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O novo mapa do poder mundial: um ponto de mutação histórica

A emergência de um mundo multipolar e o crepúsculo da hegemonia americana.

Durante mais de sete décadas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o planeta viveu sob uma ordem relativamente estável, moldada pela hegemonia dos Estados Unidos. Esse período, conhecido como “Pax Americana”, garantiu não apenas o predomínio militar e econômico de Washington, mas também a difusão de um modelo político – a democracia liberal – e de uma cultura de produtividade e consumo insustentáveis que se tornaram, por um tempo, universais.

No Brasil e na maior parte do mundo, desde a infância, todos nós, meninos e meninas da minha geração, fomos literalmente assediados por informações e estímulos culturais de origem norte-americana que chegavam até nós por todas as formas possíveis imagináveis. Enxurradas de filmes do faroeste e de guerra, super-heróis e mulheres-maravilha, Tarzan e assemelhados, fizeram nossas cabeças e serviram (e ainda servem) como propaganda global da hegemonia americana.
Eles fabricam mitos de liberdade, heroísmo e justiça que mascaram relações de poder e sustentam a ideia de que o mundo “precisa” da tutela moral dos Estados Unidos.

Mas esse ciclo está chegando ao fim. O século 21 assiste ao nascimento de um mundo multipolar, no qual o poder é fragmentado entre várias potências – Estados Unidos, China, Rússia, União Europeia, Índia e até atores regionais como Turquia, Coreia do Sul, Irã e Brasil. O equilíbrio global deixou de ser vertical para se tornar horizontal, fluido e imprevisível.

A China tornou-se o principal desafiante da primazia americana. Sua ascensão não se limita à economia; é tecnológica, diplomática e militar. O país combina planejamento estatal, inovação e nacionalismo com uma diplomacia pragmática que busca expandir sua influência sem depender da força bruta. A China se apresenta hoje como um dos principais vetores dessa mudança. O presidente Xi Jinping tem repetido que o país defende “um mundo multipolar igual e ordenado” e que cada país “deve encontrar o seu lugar num sistema multipolar”. O que significa que cada país deve poder desempenhar seu papel no sistema global.

A Rússia, por sua vez, opera no tabuleiro geopolítico com táticas híbridas – energia, guerra e desinformação – tentando restaurar parte do poder perdido com o colapso soviético.

Enquanto isso, os Estados Unidos, atolados em divisões internas, sofrem um desgaste de legitimidade. As guerras no Iraque e no Afeganistão minaram sua autoridade moral; a polarização política e o populismo à la Trump corroem por dentro o prestígio de sua democracia. O dólar ainda reina, mas o mundo já experimenta novas moedas, blocos alternativos e alianças fora da órbita americana. A prestigiosa revista TIME no recente artigo “Here’s Why the U.S. is No Longer the World’s Only Superpower” aponta que embora os EUA ainda sejam muito potentes, “teremos a partir de agora de operar em um mundo multipolar.

Outras análises afirmam que os EUA hoje exibem “marcadores típicos de declínio” de grandes potências: divisão interna, alianças enfraquecidas, autoridade moral diminuída. Em termos econômicos, há evidências de que o peso industrial americano tem caído: por exemplo, um estudo diz que a participação dos EUA no valor‐adicionado da manufatura entre economias avançadas caiu de 78% para 49% entre 2000 e 2024.

Mas multipolaridade não é necessariamente, sinônimo de equilíbrio. Em vez de um concerto harmônico de nações, o que pode se formar é uma arena de interesses conflitantes, em que o poder é negociado em múltiplos níveis – energia, tecnologia, informação, território e valores culturais. O tabuleiro global tornou-se um xadrez tridimensional, no qual cada movimento reverbera em todo o sistema.

Nesse contexto, o Sul Global desponta como um novo eixo de articulação. Países como Brasil, Indonésia e África do Sul reivindicam voz própria e recusam alinhar-se automaticamente a Washington ou Pequim. Essa “neutralidade ativa” pode redefinir o equilíbrio geopolítico e dar origem a uma nova gramática do poder – menos hierárquica, mais plural e, talvez, mais instável.

O desafio do momento é compreender que o declínio da hegemonia americana não significa o advento imediato de uma ordem mais justa ou cooperativa. Como ocorre em toda situação de transição histórica, ele significa, antes, o ingresso em uma era de incertezas, onde o poder é descentralizado, mas as rivalidades se multiplicam. Trata-se de um verdadeiro ponto de mutação histórica – e, como em toda transição, o risco de conflito é tão grande quanto a promessa de renovação.

Essa combinação – ascensão de novas potências + relativo recuo americano – gera um mapa de poder diferente, no qual: A China atua não só por força econômica ou militar, mas diplomática, cultural e por meio de alianças (por exemplo, seus laços com países do Sul Global). A Índia, o Brasil e outros países do Sul Global começam a se posicionar de modo menos automático em relação aos EUA ou à China, buscando autonomia e parcerias múltiplas. Organizações e fóruns – como o BRICS, a SCO, alianças regionais – ganham relevância como arenas de cooperação, desafio e reconfiguração de blocos.

Claro, nada está pronto. Vivemos um ponto de mutação histórica no qual o novo mapa do mundo ainda está sendo desenhado. Mas uma coisa é certa: o futuro não terá um único centro de gravidade. O poder, agora, é um mosaico – e sua leitura exigirá mais sutileza, diplomacia e inteligência do que nunca.

FOTO: The White House

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-novo-mapa-do-poder-mundial-um-ponto-de-mutacao-historica