O preconceito de um chanceler europeu abriu uma janela para entender a hierarquia invisível que ainda governa as relações Norte–Sul.
A fala do chanceler não foi um deslize acidental. Foi o sintoma público de um olhar colonial que continua moldando decisões estratégicas na Europa e que se intensifica em momentos de disputa global por recursos, território e narrativa. Quando Merz ironizou “aquele lugar onde estávamos”, ele explicitou o cálculo: a Alemanha precisa da Amazônia para cumprir metas climáticas, mas não precisa tratar o Brasil como igual. É esse desequilíbrio que o país precisa enfrentar agora, antes que vire doutrina.
A cena e a tese
A fala de Friedrich Merz não é um acidente diplomático. É uma fotografia revelada do que parte do Norte global realmente pensa quando as câmeras oficiais se desligam. Dias depois de discursar em Belém sobre “parceria” e “cooperação climática”, o chanceler alemão voltou a Berlim, riu da cidade anfitriã diante de empresários e transformou a Amazônia em piada. A cena viralizou porque expõe uma verdade incômoda. O Brasil oferece território, legitimidade e capital político para a agenda climática mundial, mas ainda é tratado como cenário descartável. O riso que ecoou na Alemanha não é só sobre Belém. É sobre o lugar que querem nos impor na hierarquia global — e o alerta que precisamos finalmente levar a sério.
O que realmente foi dito — e o que foi revelado
A frase de Merz é simples e brutal. Ele contou que perguntou aos jornalistas que o acompanharam na COP30 quem gostaria de ficar “naquele lugar onde estávamos”. Ninguém levantou a mão. A plateia alemã riu. Merz sorriu. A Alemanha apareceu como país “bonito e livre”. Belém apareceu como lugar do qual se foge aliviado. O contraste não é retórico, é ideológico. Em Belém, Merz falou em fundo climático, em parceria estratégica, em responsabilidade compartilhada. Em Berlim, falou a verdade estrutural: o Sul global continua sendo visto como espaço de uso, não de convivência; como território funcional, não como sujeito político. A fala revela o hiato entre o discurso oficial da cooperação e o olhar íntimo de uma parte do Norte que ainda trata o Brasil como periferia, mesmo quando precisa de nós para salvar o planeta.
A hierarquia invisível que sustenta o Norte global
A piada de Merz é apenas a superfície de uma estrutura muito mais profunda. O Norte global segue operando a partir de um princípio não declarado: o de que a periferia continua obrigada a fornecer legitimidade, recursos e estabilidade, enquanto o centro mantém o monopólio simbólico da civilização. A Amazônia é celebrada como solução climática, mas o Brasil que a sustenta é tratado como corpo descartável. A lógica é antiga e se reproduz com novos códigos: cooperação sem igualdade, financiamento sem autonomia, parceria sem reconhecimento. Quando Merz ridiculariza Belém, ele não está descrevendo a cidade. Está reafirmando a hierarquia que define o Norte como padrão e o Sul como exceção. É essa assimetria que dá forma às negociações, aos fundos climáticos, às alianças e às políticas que cercam o Brasil. A gafe apenas deixou à mostra o que sempre existiu: a convicção silenciosa de que nosso lugar é o de cenário, não o de potência.
O custo estratégico para o Brasil — e o risco interno imediato
A fala de Merz não atinge apenas a imagem de Belém. Ela fragiliza o Brasil exatamente no momento em que o país tenta projetar liderança global na transição ecológica. Quando o chefe de governo da maior economia da Europa ridiculariza a cidade que sediou a COP30, ele desloca o centro da narrativa: em vez de discutir a Amazônia como ativo geopolítico, o debate passa a girar em torno de nossa suposta incapacidade estrutural. Isso afeta diretamente nossa autoridade política, nossa capacidade de negociação e nossas credenciais de liderança frente ao Sul global. Pior: a humilhação simbólica se converte, dentro do Brasil, em munição imediata para a extrema-direita, que opera a lógica do Brasil inviável, da autodepreciação nacional e da submissão ao Norte como destino natural. O episódio vira ferramenta de guerra cultural e informacional, reforçando a imagem de um país que deve aceitar o lugar que lhe atribuem. A verdadeira ameaça não está na piada de Merz, mas no modo como ela reorganiza percepções, desestabiliza confiança e alimenta discursos que corroem a soberania desde dentro.
O custo estratégico para a própria Alemanha
A arrogância de Merz não fragiliza apenas o Brasil. Ela atinge a própria Alemanha num ponto sensível: sua ambição de liderar a transição ecológica e mediar a relação entre Norte e Sul. Num mundo que se reorganiza em blocos, com BRICS ampliado, disputa por governança climática e pressão crescente por financiamento justo, Berlim não pode se dar ao luxo de desprezar publicamente o país que abriga a maior floresta tropical do planeta. A fala enfraquece a credibilidade alemã perante o Sul global, expõe contradições entre discurso e prática e cria ruído interno em uma União Europeia já pressionada por sua incapacidade de cumprir metas climáticas. Ao mesmo tempo, entrega aos rivais estratégicos — China e Estados Unidos — um argumento perfeito para minar a narrativa europeia de responsabilidade ambiental. A gafe de Merz não é apenas um ataque simbólico ao Brasil. É um erro que compromete a posição diplomática da Alemanha e revela o limite de uma liderança que se sustenta em moralismo climático, mas não reconhece a dignidade dos parceiros que diz respeitar.
O alerta que o Brasil precisa ouvir agora
O episódio Merz é mais do que uma provocação diplomática. Ele revela o dilema central do Brasil nesta década: o país disputa protagonismo global ao mesmo tempo em que parte do Norte insiste em confiná-lo ao papel de periferia funcional. A piada dita em Berlim funciona como diagnóstico: somos indispensáveis para a estabilidade climática, mas ainda tratados como coadjuvantes na arquitetura de poder. A resposta brasileira, portanto, não pode ser emocional. Precisa ser estratégica. Requer afirmar soberania na COP, exigir paridade nos fundos florestais, proteger nossa inteligência informacional, fortalecer alianças Sul–Sul e romper com a lógica que nos empurra para a subordinação simbólica. A transição ecológica abriu uma janela histórica para o Brasil redefinir seu lugar no sistema internacional. Mas essa janela só se sustenta se recusarmos, de forma explícita, o papel de cenário que parte do Norte tenta nos impor. A fala de Merz não diminui o Brasil. Ela apenas mostra que ainda há quem acredite que este país pode ser facilmente diminuído.
Conclusão: Entre o que somos e o que querem que sejamos
A gafe de Merz não define o Brasil. Ela define o limite de quem ainda olha o mundo pela lente estreita das antigas metrópoles. O país que sediou a COP30 não é o lugar “do qual se foge”, mas um dos territórios decisivos da disputa geopolítica do século XXI. O Brasil tem recursos, história, densidade civilizatória e poder para escrever sua própria trajetória — desde que recuse, com consciência estratégica, qualquer narrativa que tente reduzir seu papel no mundo. O riso que ecoou em Berlim não nos diminui. Ele apenas confirma por que precisamos, mais do que nunca, assumir a autoria do nosso destino. Porque, se não escrevermos a nossa história, o Norte continuará escrevendo por nós — rindo enquanto faz isso.
Artigo publicado originalmente em <código aberto>
FOTO: Steffen Prößdorf
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-que-a-gafe-de-merz-revela-sobre-o-brasil-aos-olhos-do-norte-global