Com o mundo em guerra e organismos paralisados, a reconstrução do multilateralismo é uma exigência histórica — não uma utopia.
No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o mundo buscou um novo pacto civilizatório. Da devastação de dois conflitos globais e do genocídio nazista, emergiu a consciência de que era preciso institucionalizar a cooperação internacional. Nasciam a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras estruturas multilaterais com o objetivo de evitar novos colapsos políticos, econômicos e humanitários. Por décadas, esses organismos foram alicerces da ordem internacional. Hoje, vivem o seu maior momento de fragilidade.
Contradições estruturais
Criada em 1945, a ONU é o maior símbolo do multilateralismo. Com 193 países-membros, sua missão central é a manutenção da paz e da segurança internacionais. Foi protagonista no fim do apartheid na África do Sul, promoveu missões de paz em mais de 70 conflitos e liderou a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, seu órgão mais poderoso — o Conselho de Segurança — é, em si, uma contradição moral e política.
O Conselho é formado por 15 membros, dos quais cinco são permanentes com poder de veto: Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França. Todos esses países são declaradamente detentores de armas nucleares e, ironicamente, estão entre os maiores fabricantes e exportadores de armamentos do mundo. Como esperar neutralidade ou liderança ética de potências que lucram com o armamento dos conflitos que deveriam ajudar a resolver?
Crise de legitimidade
Outras instituições compartilham dessa crise de legitimidade. A OMS, criada em 1948 com 194 membros, foi essencial no combate à varíola e à poliomielite, mas sua atuação durante a pandemia de Covid-19 expôs tensões entre ciência, soberania nacional e interesses geopolíticos. A OMC, fundada em 1995 com 164 países, foi um motor do comércio internacional, mas hoje está paralisada pela incapacidade de lidar com disputas entre grandes economias e pela ausência de consenso sobre reformas estruturais.
A fragilidade do sistema multilateral atual evoca o fracasso da Liga das Nações, criada em 1919 após a Primeira Guerra Mundial. Sem força coercitiva, sem participação dos EUA e incapaz de conter a ascensão do nazismo, a Liga desmoronou às vésperas da Segunda Guerra. A ONU, embora mais robusta, enfrenta dilemas semelhantes: impotência diante de guerras prolongadas, paralisia decisória e crescente desconfiança de seus próprios membros.
O colapso como escolha
O enfraquecimento da ONU tem raízes em fatores diversos. Primeiro, a crescente polarização global, com o retorno da competição entre grandes potências. Segundo, o uso recorrente do veto no Conselho de Segurança, que bloqueia ações eficazes diante de crises como a guerra na Síria ou a guerra na Ucrânia. Terceiro, a dependência orçamentária de poucos países, o que torna a organização vulnerável a chantagens políticas.
Algumas declarações históricas de secretários-gerais da ONU ajudam a entender a gravidade do momento. Dag Hammarskjöld (1953–1961) advertiu: “A ONU não foi criada para levar a humanidade ao paraíso, mas para salvá-la do inferno.” Boutros Boutros-Ghali (1992–1996) afirmou que “sem reformas estruturais profundas, a ONU caminhará para a irrelevância.” E Kofi Annan (1997–2006), laureado com o Nobel da Paz, declarou: “Se a ONU falhar, será porque seus Estados-membros falharam.”
Em 2025, o mundo contabiliza mais de 50 conflitos armados ativos, segundo dados do Uppsala Conflict Data Program (UCDP). Cerca de 20 são classificados como guerras — com pelo menos mil mortes anuais — em países como Iêmen, Sudão, Mianmar, Etiópia, Congo, Israel, Rússia e Ucrânia. A maioria deles ocorre à margem da ação efetiva das instituições internacionais.
Utopia ou necessidade?
Será utopia lutar energicamente pela paz mundial? Utopia, aqui, não deve ser confundida com ingenuidade. Trata-se da recusa em aceitar o colapso como destino inevitável. Em momentos críticos da história, a humanidade se viu diante do abismo e optou por resistir.
Durante a Idade Média, a peste negra dizimou milhões na Europa. Muitos acreditaram que ali estava o fim da civilização. Aqueles que ousaram imaginar a superação da pandemia foram chamados de “utópicos” — mas saíram vitoriosos. No século XX, a reconstrução europeia pós-guerra foi considerada improvável — e resultou na criação do Estado de bem-estar social. Ainda mais recentemente, o fim do apartheid na África do Sul parecia inatingível — até que se tornou realidade. A história mostra que é justamente no limiar da barbárie que as utopias se revelam mais necessárias.
A paz mundial, tão desejada por sábios, líderes religiosos, poetas e idealistas ao longo da história, enfrenta uma contradição paralisante: em meio a esse nosso mundo conturbado dos dias atuais observamos também que pela primeira vez, a humanidade tem meios concretos de enxergar o planeta como um só corpo e seus povos como partes de um único sistema interdependente. A paz global deixou de ser apenas um anseio nobre: tornou-se uma etapa natural da evolução social. Alguns já chamam essa nova consciência coletiva de “planetização”.
Mais que decidir, é hora de agir
Nada simboliza mais o risco global atual do que a guerra em curso entre a Rússia e a Ucrânia. Um dos envolvidos é membro permanente do Conselho de Segurança e potência nuclear. O fato de essa guerra ter sido iniciada sem qualquer possibilidade de contenção ou mediação eficaz da ONU revela a obsolescência da atual arquitetura internacional.
O sistema multilateral precisa de um renascimento urgente. Não se trata de utopia, mas de sobrevivência. A ONU precisa de reformas profundas: ampliação do Conselho de Segurança, fim do poder de veto absoluto, fortalecimento das agências humanitárias e mais autonomia orçamentária. A OMC deve se adaptar à nova ordem digital e às cadeias de suprimento geopolíticas. A OMS deve ganhar blindagem política para agir com independência científica em futuras pandemias.
A paz mundial, hoje, repousa sobre uma rede de instituições fracas, politizadas e desacreditadas. O risco é claro: se o mundo não renovar sua confiança no multilateralismo, retornará à lógica das potências — onde a força bruta vale mais que o diálogo. Já vimos esse filme antes. E o desfecho foi trágico.
FOTO: Wikimedia Commons
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/o-vacuo-das-instituicoes-multilaterais-e-a-urgencia-de-um-novo-pacto-global