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Para esfriar o planeta, é preciso “esfriar” as desigualdades

O combate à crise climática depende de enfrentar a concentração de riqueza e o poder das corporações globais.

Na última edição da Foreign Affairs, Jessica F. Green, professora de Ciência Política na Universidade de Toronto e autora de Existential Politics: Why Global Climate Institutions Are Failing and How to Fix Them (Política Existencial: Por que as Instituições Climáticas Globais Estão Falhando e Como Consertá-las), argumenta que as políticas atuais contra as mudanças climáticas estão “falidas”.

Os argumentos são fortes.

Muito embora o Acordo de Paris e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) tenham feito algum progresso para evitar que o aquecimento global chegue próximo de 3 graus, a meta de 1,5 grau já foi descumprida e o mundo enfrenta a terrível perspectiva de o aquecimento global alcançar, em poucas décadas, algo entre 2 e 2,5 graus centígrados.

Green argumenta que o mecanismo básico utilizado pelo Acordo de Paris e pela Convenção do Clima — a gestão do mercado de carbono — não funciona como deveria.

Segundo a autora, como o objetivo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa, as políticas adotadas pelos países nesse âmbito são voltadas para a mensuração e a comercialização de unidades de emissões desses gases, uma abordagem que ela chama de “gestão de toneladas”.

Essa abordagem permite que os governos adaptem as políticas climáticas de forma a maximizar a eficiência e a flexibilidade econômica. Mas, na prática, essas políticas não funcionam muito bem. Elas mantêm os maiores emissores em atividade, ao mesmo tempo que oferecem às empresas e aos governos a conveniente cobertura política para ignorar o problema subjacente: como as políticas nacionais e internacionais sustentam a economia dos combustíveis fósseis.

Em outras palavras, a política climática global estaria falida porque foca quase que exclusivamente na gestão das emissões de carbono (“gestão de toneladas”) — medindo, precificando e compensando emissões — em vez de transformar as estruturas econômicas que sustentam a dependência mundial de combustíveis fósseis.

A compensação de carbono (também chamada de créditos de carbono) permite que empresas e países cumpram parte de suas metas de redução de emissões pagando por atividades que reduzem as emissões em outros lugares — por exemplo, comprando créditos de carbono da Indonésia ou do Brasil para apoiar a proteção de suas vastas florestas tropicais.

A precificação do carbono funciona exigindo que o emissor pague ao governo um imposto por tonelada de dióxido de carbono emitida ou implementando um sistema de limite e comércio de emissões, no qual o governo estabelece um teto máximo para as emissões agregadas e as empresas compram e vendem licenças de emissão de carbono para se manterem dentro desse limite.

Nenhum desses mecanismos básicos está alcançando os resultados desejados. Uma meta-análise recente de mais de 2.000 projetos de compensação de carbono constatou que menos de 16% dos créditos de carbono emitidos desde 2005 corresponderam a reduções reais de emissões.

Ademais, a precificação do carbono, embora cubra 28% das emissões globais, seria muito baixa. O preço médio é de apenas US$ 5 por tonelada, muito abaixo do custo econômico e social real da emissão, estimado entre US$ 44,00 e US$ 525,00.

A autora também enfatiza que o financiamento efetivo para enfrentar as mudanças climáticas e promover a transição energética é extremamente baixo. A meta de US$ 100 bilhões anuais, prometida em 2009, foi atingida com atraso e sem novos recursos. E o novo compromisso de US$ 300 bilhões anuais até 2035 é muito inferior às necessidades, estimadas em US$ 1,3 trilhão por ano.

Jessica Green propõe mudar o foco da diplomacia climática — das negociações de emissões na UNFCCC para instituições econômicas globais capazes de lidar com o dinheiro, o poder e os incentivos estruturais que sustentam o “sistema fóssil”.

Assim, seriam necessárias outras políticas globais mais robustas para o combate às mudanças climáticas.

Em primeiro lugar, seria preciso uma reforma tributária internacional.

O Observatório Tributário da UE, um instituto de pesquisa citado pela autora, constatou que mais de um terço dos lucros multinacionais das corporações — totalizando US$ 1 trilhão em 2022 — são transferidos para o exterior para evitar impostos. Essa transferência contribui para expandir a riqueza — e, portanto, a influência — de grandes empresas já estabelecidas como proprietárias de ativos fósseis.

Além disso, estima-se que entre US$ 7 trilhões e US$ 32 trilhões em ativos corporativos sejam mantidos em contas offshore, nas quais são sujeitos a pouca ou nenhuma tributação.

O dinheiro para o combate às mudanças climáticas existe, mas está congelado na imensa evasão fiscal.

A própria desigualdade, gerada pela escassa tributação desses imensos ativos, contribui para as emissões.

Relatório recente da Oxfam constatou que o 0,1% mais rico da população mundial produz mais poluição de carbono em um único dia do que os 50% mais pobres do planeta emitem durante todo o ano.

Propostas como o “Imposto Zucman”, na França — nomeado em homenagem ao economista que o propôs, Gabriel Zucman —, que não foi aprovado em votação parlamentar, poderiam ser úteis nesse sentido. Tal imposto seria uma taxa de 2% cobrada sobre ativos acima de 100 milhões de euros.

Um segundo problema mencionado por Jessica Green seria a proteção jurídica de investimentos, que coloca os interesses privados acima dos interesses públicos.

Como menciona a autora, desde 1980, os países assinaram mais de 2.600 tratados bilaterais e multilaterais de investimento, que protegem os investidores da expropriação nacional, da discriminação comercial e de encargos regulatórios “indevidos”.

As alegadas violações desses tratados são arbitradas por meio do Sistema de Solução de Controvérsias entre Investidores e Estados (ISDS, na sigla em inglês), que se revelou uma grande vantagem para os proprietários de ativos fósseis.

Desde 2013, aproximadamente 20% dos casos de ISDS foram iniciados por empresas de combustíveis fósseis. Essas empresas venceram cerca de 40% dos casos, com uma indenização média de US$ 600 milhões. Oito das 11 maiores indenizações concedidas por meio do ISDS — todas acima de US$ 1 bilhão — foram para empresas de combustíveis fósseis.

O Brasil, frise-se, não tem esse problema, pois o PT, nos governos de FHC, conseguiu rejeitar os acordos bilaterais de proteção aos investimentos, feitos nos moldes da OCDE, os quais criavam privilégios para investidores internacionais e, no limite, colocavam obstáculos à implantação de políticas robustas de desenvolvimento conforme o interesse público.

O então deputado Aloizio Mercadante, presidente da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados, teve papel destacado nessa resistência histórica, que até hoje protege os interesses do Brasil no cenário mundial. Atualmente, o país tem seu próprio modelo de proteção de investimentos, muito menos permissivo e mais alinhado ao interesse nacional.

Green, entretanto, propõe a exclusão do setor de combustíveis fósseis das proteções do ISDS, de modo que os países possam controlar mais essas companhias e, eventualmente, contrariar seus interesses sem serem obrigados a pagar indenizações bilionárias.

A redistribuição de recursos financeiros e a diminuição do poder jurídico-político das corporações ligadas à economia carbonizada limitariam a esfera de influência dessas “firmas fósseis” e gerariam fundos suficientes para a transição energética.

A autora não defende extinguir a UNFCCC, mas restringir seu papel.

A Convenção deveria servir mais como plataforma técnica de coleta de dados, compartilhamento de tecnologias e gestão limitada de fundos de mitigação e adaptação.

Contudo, as decisões estruturais — tributárias, financeiras e de investimentos — deveriam migrar para outros fóruns internacionais (OCDE, G20 e novos tratados econômicos centrados na sustentabilidade social e ambiental do desenvolvimento).

Mas o ponto fulcral do artigo é mais profundo.

A manutenção da economia carbonizada está fortemente associada à desigualdade econômica, social e política reproduzida por essa própria economia, em nível mundial.

As mudanças climáticas não poderão ser efetivamente enfrentadas sem o combate às desigualdades e aos privilégios das grandes corporações e dos bilionários que, direta ou indiretamente, ditam os rumos da economia planetária.

Os povos, os Estados e os interesses públicos têm de preponderar nos centros estratégicos que realmente decidem os rumos mundiais.

As imensas desigualdades fazem muito mal à ordem mundial, às pessoas e ao planeta.

Para esfriar o planeta, é preciso “esfriar” as desigualdades.

Foto: Ricardo Stuckert/Secom-PR

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/para-esfriar-o-planeta-e-preciso-esfriar-as-desigualdades