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Pequim investe bilhões em Pecém — e o Brasil enxerga chance rara na disputa tecnológica

Pecém recebe cabos, energia e bilhões. Pequim rastreia futuro, Washington discute controle, e Brasil precisa transformar vantagem estratégica.

Um anúncio pode mudar o fluxo de dados do mundo. Foi assim no início de dezembro, quando a gigante chinesa ByteDance apresentou o projeto que pretende marcar a história tecnológica do país: R$ 200 bilhões para erguer, no Porto de Pecém, Ceará, o primeiro grande data center latino-americano do TikTok. Não se trata apenas de galpões cheios de servidores. É movimento geopolítico, disputa por influência, corrida por inteligência artificial, controle de dados e energia limpa para sustentar a engrenagem infinita do scroll com que milhões moldam, diariamente, seu imaginário coletivo.

A escolha do Ceará tem perfume estratégico. Pecém se tornou um entroncamento vital na costa atlântica: recebe cabos submarinos que ligam o Brasil diretamente à Europa e à África, encurtando distâncias, reduzindo a latência, aproximando continentes. É como se o Brasil, de repente, estendesse um fio óptico ao Velho Mundo e acenasse dizendo: estamos prontos para jogar no tabuleiro global da informação. Não por acaso, o projeto foi apresentado ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — gesto calculado, fotografia que atravessa oceanos.

O plano não chega sozinho. A infraestrutura será construída com a Omnia, desenvolvedora de data centers, e alimentada por energia renovável fornecida pela Casa dos Ventos. Energia eólica, limpa, soprada do litoral nordestino para mover milhões de vídeos curtos, dublagens, lives, publicidades, influenciadores que transformam tendências em lucro e adolescentes em máquinas de viralização instantânea. A cena é quase irônica: o vento milenar do sertão alimentando algoritmos capazes de definir o hit do verão, a gíria do dia, a música que atravessa fronteiras em 15 segundos.

Mas convém olhar além do espetáculo. O TikTok não é apenas rede social; é um império cultural. Reinventa marketing, altera comportamento de consumo, distorce tempos de atenção, cria microcelebridades com prazo de validade e substitui em horas o que antes levava meses para se consolidar. Tudo isso guiado por um algoritmo que decifra desejos antes mesmo que o usuário tenha plena consciência deles. Tornou-se palco, periódico, poleiro e praça pública ao mesmo tempo. E agora finca raízes em solo brasileiro.

O detalhe incômodo — ou fascinante, depende da lente — é que os Estados Unidos tentam, há anos, quebrar o vínculo entre o TikTok e a China. A Casa Branca pressionou, ameaçou banir o aplicativo, exigiu que a ByteDance cedesse o controle para empresas norte-americanas. Chamou o app de risco à segurança nacional, temendo que dados de milhões de cidadãos se transformassem em trunfo geopolítico nas mãos de Pequim. Washington olha o TikTok como quem observa uma peça fora do próprio tabuleiro — e tenta puxá-la para si.

Enquanto isso, a China expande sua teia digital com suavidade estratégica. Se, nos EUA, o destino do aplicativo ainda é incerto, aqui o movimento é oposto: expansão, infraestrutura, presença física, poder instalado em concreto e fibra. Se o futuro das redes sociais será decidido pela capacidade de processar dados e treinar inteligências artificiais, o Ceará acaba de entrar no mapa decisivo, com ares de rota internacional para o século XXI.

Ainda assim, há perguntas que não podem ser escondidas pelo brilho dos números. Um data center desse porte demanda água, energia, área territorial. Movimentos indígenas da região já alertaram para risco de uso de terras sem consulta adequada. Ambientalistas questionam o impacto a médio prazo. Ciberespecialistas discutem soberania e alertam que dados, quando hospedados aqui, ainda podem obedecer algoritmos chineses ou legislações estrangeiras. Nada disso é irrelevante. Tecnologia só é progresso quando não atravessa vidas como atropelo.

O Brasil costuma desperdiçar oportunidades por excesso de festa ou falta de vigilância. Pecém pode ser marco de um Brasil protagonista na infraestrutura digital global, centro de conexão entre hemisférios, laboratório para IA, polo que atrai empresas e desenvolve talentos. Mas esse mesmo projeto pode virar símbolo de subordinação tecnológica se for aceito com passividade e euforia ingênua. O vento que move turbinas é o mesmo que levanta poeira — e o país deve escolher o que quer enxergar.

Talvez estejamos diante de chance rara: usar o sopro do litoral para empurrar o país à vanguarda da era dos dados. Cabe vigiar, cobrar, planejar. Porque o TikTok não veio apenas postar vídeos. Veio plantar raízes, capturar futuros, disputar mentes.

E o futuro, como sabemos, não costuma esperar quem se distrai rolando a tela.

Foto: Tatiana Fortes / Governo do Ceará

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/pequim-investe-bilhoes-em-pecem-e-o-brasil-enxerga-chance-rara-na-disputa-tecnologica