A verdade estrutural que Celso Furtado revelou sobre nossa periferia.
Existe uma pergunta que incomoda qualquer brasileiro que olha para nossa história: por que continuamos pobres?
A resposta mais comum é frustrante: “estamos atrasados”, “falta educação”, “precisamos esperar nosso tempo”. Mas e se eu te disser que essa narrativa é uma ilusão? E se a pobreza não for uma fase transitória, mas uma posição estrutural no sistema econômico mundial? Celso Furtado, um dos maiores economistas brasileiros, entendeu isso há décadas. Para ele, o subdesenvolvimento não era um estágio que países “atrasados” eventualmente superariam. Era uma estrutura permanente. Países periféricos não são pobres porque estão chegando tarde à festa do desenvolvimento. São pobres porque ocupam uma posição específica num sistema global que concentra tecnologia, inovação e valor agregado no centro, enquanto relega commodities e baixa complexidade à periferia.
Hoje vou te mostrar por que essa visão estruturalista muda completamente como entendemos nosso lugar no mundo.
Vamos mergulhar nessa ideia.
O mundo está dividido em centro e periferia, com estruturas produtivas radicalmente diferentes.
A teoria estruturalista da CEPAL, desenvolvida por Raúl Prebisch e Celso Furtado nos anos 1950, identificou que a economia mundial não é um campo nivelado onde todos competem em igualdade de condições. Existe uma divisão clara entre centro e periferia, e essa divisão não é acidental.
Os países centrais têm estruturas produtivas homogêneas e diversificadas. Isso significa que produzem uma ampla gama de produtos com alta produtividade, dominando setores industriais complexos com retornos crescentes de escala, alto conteúdo tecnológico e forte capacidade de inovação.
Já os países periféricos, como o Brasil, têm estruturas heterogêneas e especializadas. Heterogêneas porque convivem atividades de altíssima produtividade (como o agronegócio exportador) com atividades de baixíssima produtividade (agricultura de subsistência). Especializadas porque suas exportações concentram-se em poucos bens primários, commodities que têm baixa complexidade e pouca capacidade de gerar inovação tecnológica.
A deterioração dos termos de troca transfere riqueza sistematicamente da periferia para o centro.
Prebisch descobriu algo perturbador: os preços dos produtos primários se reduzem comparativamente aos preços dos produtos industriais ao longo do tempo. Isso não é um acidente de mercado, é uma tendência estrutural.
Por quê? Porque as elasticidades-renda dos bens industriais são maiores que as dos produtos primários. Quando a renda global aumenta, a demanda por produtos industriais cresce mais do que proporcionalmente, enquanto a demanda por commodities cresce menos. Resultado: os ganhos de produtividade do setor primário-exportador são transferidos para os países industrializados através da queda relativa de preços.
Isso significa que mesmo quando países periféricos aumentam sua eficiência na produção de commodities, eles não capturam esses ganhos. O centro captura. A periferia corre para ficar no mesmo lugar.
Atividades econômicas não são iguais: retornos crescentes de escala definem quem fica rico.
Para Furtado e os estruturalistas, nem todas as atividades produtivas geram o mesmo tipo de desenvolvimento. Existem atividades com retornos crescentes de escala que induzem desenvolvimento, e atividades com retornos decrescentes que mantêm países estagnados.
Atividades de alto valor agregado operam em competição imperfeita e apresentam características específicas: importantes curvas de aprendizagem, rápido progresso técnico, alto conteúdo de pesquisa e desenvolvimento, amplas possibilidades de economias de escala e escopo, alta concentração industrial e grandes barreiras à entrada. Essas atividades estão concentradas no centro.
Atividades de baixo valor agregado, praticadas em países periféricos, apresentam estrutura de competição perfeita: baixo conteúdo de P&D, baixa inovação tecnológica, informação perfeita, ausência de curvas de aprendizado e possibilidades diminutas de divisão do trabalho. Agricultura e extrativismo simplesmente não permitem o mesmo tipo de evolução tecnológica que a indústria complexa permite.
A tecnologia moderna penetrou no estilo de vida, mas não no aparelho de produção.
Furtado identificou uma distonia fundamental nas economias periféricas. Em suas palavras: “a tecnologia moderna penetrava com intensidade no estilo de vida e muito debilmente no aparelho de produção. Essa distonia está na raiz do fenômeno que em nossa época veio a ser conhecido como subdesenvolvimento.”
O que isso significa? Países como o Brasil importam os padrões de consumo dos países ricos, mas não desenvolvem a capacidade produtiva para fabricar esses bens. Consumimos iPhones, mas não produzimos semicondutores. Dirigimos carros modernos, mas importamos as máquinas que os fabricam. Essa dependência estrutural perpetua nossa posição periférica.
O setor primário-exportador pode ser dinâmico e competitivo internacionalmente, mas é incapaz de difundir progresso técnico para o resto da economia, de empregar produtivamente toda a mão de obra e de permitir o crescimento sustentado dos salários reais. O livre comércio, longe de nivelar o jogo, aprofunda essas características na ausência de uma indústria dinâmica.
Complexidade econômica mede a sofisticação produtiva que separa ricos de pobres.
A abordagem moderna da complexidade econômica, desenvolvida por Hidalgo e Hausmann, formalizou matematicamente o que Furtado intuía. O índice de complexidade econômica mede duas coisas: ubiquidade (quantos países conseguem produzir determinado produto) e diversidade (quantos produtos diferentes um país consegue exportar).
Países que exportam produtos não-ubíquos e complexos são raros e sofisticados. Poucos países produzem equipamentos médicos de processamento de imagem ou periféricos de computador de alta tecnologia. Países que exportam produtos ubíquos e simples são comuns. Muitos países exportam soja, minério de ferro ou petróleo.
A curva S da complexidade econômica mostra que apenas Israel, Irlanda, Coreia do Sul e Singapura conseguiram saltar da periferia para o centro nas últimas décadas. Brasil, África do Sul e Turquia ficaram presos no desenvolvimento intermediário. Conseguimos produzir alguns bens complexos, mas não avançamos o suficiente para alcançar as economias verdadeiramente complexas.
Dados brasileiros mostram desindustrialização concentrada nos setores de baixa tecnologia.
Entre 1986 e 2022, o Brasil perdeu 12,6 pontos percentuais de participação da manufatura no emprego total. Mas essa queda não foi homogênea. Dos 12,6 pontos perdidos, 9 pontos vieram dos setores de baixa e média-baixa tecnologia, enquanto os setores de alta e média-alta tecnologia perderam apenas 3,6 pontos.
O que isso significa? A desindustrialização brasileira foi concentrada exatamente nos setores que já eram menos sofisticados. Perdemos têxtil, vestuário, calçados, metalurgia básica. Os setores de maior intensidade tecnológica mantiveram alguma resiliência, mas nunca cresceram o suficiente para compensar as perdas ou para nos mover na direção da complexidade.
O resultado é que cerca de 70% da desindustrialização total veio de setores de baixa tecnologia. Nossa estrutura produtiva regrediu, não avançou. Ficamos mais dependentes de commodities e menos capazes de inovação endógena.
Migrar de atividades de baixa para alta qualidade é o verdadeiro desafio do desenvolvimento.
Aqui está o problema central que Furtado identificou: migrar de atividades de baixa qualidade (concorrência perfeita, commodities, baixa inovação) para atividades de alta qualidade (concorrência imperfeita, indústria complexa, alta inovação) é extremamente difícil.
Por definição, as atividades de alta qualidade aparecem em mercados com estruturas de oligopólio e concorrência monopolista, o que dificulta a entrada de novos players de países emergentes. Essas atividades já estão estabelecidas no centro, protegidas por barreiras tecnológicas, economias de escala, redes produtivas densas e capacidades acumuladas ao longo de décadas.
Quando um país periférico tenta entrar nesses mercados, enfrenta concorrência de empresas que já operam na fronteira tecnológica, com curvas de aprendizado consolidadas e cadeias de fornecimento estabelecidas. O livre comércio, nesse contexto, não ajuda. Ele cristaliza a divisão internacional do trabalho existente.
Subdesenvolvimento é estrutura, não estágio: isso muda tudo.
A grande contribuição de Celso Furtado foi mostrar que o subdesenvolvimento não é uma fase transitória. Não estamos “chegando lá” automaticamente com o tempo. O capitalismo, a dependência e o subdesenvolvimento formam um sistema integrado onde a posição periférica é funcional para o centro.
Essa compreensão muda radicalmente as prescrições de política econômica. Se o subdesenvolvimento fosse apenas “atraso”, bastaria esperar, educar e melhorar instituições. Mas se é estrutura, é preciso mudança estrutural deliberada: industrialização, construção de capacidades tecnológicas, diversificação produtiva rumo à complexidade.
Furtado entendia que apenas a industrialização seria capaz de emancipar os países periféricos de uma situação subordinada no capitalismo internacional e diminuir a distância entre centro e periferia. Como esse processo dificilmente ocorreria espontaneamente pelo mercado, a industrialização deveria ser coordenada pelo Estado com um corpo técnico qualificado atento aos desafios peculiares do desenvolvimento periférico.
A pergunta que fica é: vamos continuar acreditando que somos apenas “atrasados”, ou vamos reconhecer que ocupamos uma posição estrutural que exige transformação estrutural?
PS: “Mas Paulo, essas teorias de estrutura produtiva não são difíceis demais?” Elas só parecem difíceis porque nunca foram explicadas de forma organizada. Na nossa Escola de Complexidade Econômica, tudo começa no ponto central do texto: atividades não são iguais, retornos crescentes definem quem enriquece, e países periféricos ficam presos em setores de baixa complexidade. Quando o aluno entende isso — com casos reais — a economia finalmente faz sentido. Clique Aqui para saber mais!
Por Paulo Gala
Graduado em Economia pela FEA-USP | Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo | Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY | Autor com +10,000 cópias de livros vendidas | Geriu carteiras de +R$ 3,000,000,000 | Professor na FGV/SP há 20 anos.
FONTE: https://open.substack.com/pub/paulogala/p/por-que-o-brasil-ainda-e-pobre?r=z3xa&utm_campaign=post&utm_medium=web&showWelcomeOnShare=false