Brasil segue preso ao complexo militar dos EUA, enquanto militares confundem defesa nacional com poder político e policiamento interno.
Desde os tempos dos encouraçados, dos primórdios da aviação e dos veículos automotores, as corporações militares brasileiras têm contribuído para manter a capacidade de guerra das potências imperiais.
A Marinha brasileira modernizou-se gerando lucros para estaleiros ingleses. As vendas ao Exército eram disputadas por Alemanha e França, enquanto a Itália também buscava espaço no mercado de aviação.
Até conquistar a hegemonia na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham presença tímida na disputa pelo fornecimento de armamentos ao Brasil.
Com a nova ordem mundial, tudo mudou. Forças armadas brasileiras abriram escritórios em Washington e tornaram-se extensão do vasto complexo militar norte-americano, voltado à defesa do “Ocidente” contra o “perigo vermelho”. A indústria e o Exército dos EUA passaram a fornecer armas, equipamentos, treinamento, doutrinas, valores, conceitos e modelos organizacionais às corporações brasileiras.
As raras iniciativas voltadas à autonomia foram pontuais e descontínuas. As mais significativas, lideradas pelo almirante Álvaro Alberto e pelo brigadeiro Casemiro Montenegro, buscaram domínio sobre as tecnologias nuclear e aeronáutica — enfrentando, porém, inúmeros obstáculos.
Há três décadas, quando a ilusória unipolaridade começou a ruir diante da resiliência militar russa e da ascensão chinesa, tornou-se evidente a urgência de um caminho próprio para a Defesa brasileira.
No entanto, os planos nesse sentido ignoravam uma condição essencial: a coesão nacional. A soberba militarista expressou-se no constante enaltecimento da ditadura de 1964 e na inclinação à atuação em Segurança Pública.
Em busca de legitimidade e amparadas por ampla autonomia, as corporações militares agravaram seu distúrbio de identidade funcional, ocupando espaços próprios de instituições civis e da iniciativa privada.
Acostumadas a enxergar países vizinhos como inimigos, as Forças Armadas evitaram parcerias estratégicas que poderiam viabilizar a produção de armamentos em escala rentável. Não apostaram no potencial da comunidade acadêmica nem na capacidade da indústria instalada.
Persistiram presas à mentalidade cristalizada por um século de dependência externa. Continuaram alimentando o complexo militar-industrial do Ocidente, sob liderança do Pentágono, ao mesmo tempo em que assumiam o papel de mantenedoras da ordem interna. A Defesa Nacional foi relegada à função subordinada de segurança hemisférica sob tutela de Washington.
Essa escolha abriu espaço para o ativismo político de seus membros. Atualmente, alguns militares respondem judicialmente por crimes contra a ordem democrática, enquanto os comandos se esforçam para minimizar os danos à imagem das corporações.
É nesse cenário que ressurge Donald Trump. Sua agressividade desfaz a aura de civilização com que os Estados Unidos sempre maquiaram seu domínio global. Ele desconstrói a ideia da terra da liberdade e da democracia, anulando os “bons propósitos” historicamente invocados para legitimar o uso da força bruta.
Trump evidencia a fragilidade de uma dependência que já ultrapassa oito décadas. Alguns analistas temem que seu protecionismo afete, em especial, o Exército brasileiro, dado que os principais projetos da Marinha e da Aeronáutica envolvem acordos com França e Suécia.
Essas preocupações, no entanto, são infundadas. Os meios de Defesa são interdependentes e complementares. Não podem ser analisados isoladamente. Submarinos franceses e caças suecos incorporam sistemas controlados pelos EUA. A Europa integrada à OTAN, como observou Avelãs Nunes, perdeu autonomia nas questões militares.
Também é fantasiosa a hipótese de que o tarifaço de Trump prejudicaria a indústria bélica estadunidense, financiada por aportes globais — inclusive do gigante chinês. Qualquer análise internacional que ignore a centralidade do fator militar na economia global estará fadada à inconsistência.
No campo da Defesa Nacional, a lição deixada pelas turbulências provocadas por Trump é clara: o Brasil precisa buscar, de forma objetiva, autonomia em armamentos e equipamentos.
Isso não significa trocar a dependência de Washington pela submissão aos desafiantes euroasiáticos. A redefinição da ordem global não tem data para terminar — e dificilmente ocorrerá sem conflitos sangrentos. O imponderável domina o horizonte, inclusive no que diz respeito ao material bélico. O campo de batalha e as formas de guerra estão em processo de transformação profunda.
É urgente revisar o conceito de Defesa Nacional. Essa tarefa não pode ficar restrita aos militares e especialistas. Trata-se de uma política pública de largo alcance, que exige envolvimento social e articulação entre múltiplos setores.
O debate sobre soberania nacional volta à tona pelas mãos de Donald Trump. Mas a ausência de propostas concretas para o futuro do país abre caminho para demagogos e aventureiros que se escondem atrás de um falso patriotismo — como já advertia Samuel Johnson em 7 de abril de 1775: “o patriotismo é o último refúgio do canalha” (“patriotism is the last refuge of a scoundrel”).
Será, sim, canalhice todo discurso patriótico que não lute contra as desigualdades, que não defenda comida no prato do povo, relações solidárias com os vizinhos, autonomia energética, proteção ambiental, avanço científico e tecnológico — e produção nacional de armamentos e equipamentos de Defesa.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/por-uma-nova-defesa-nacional