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Predomínio do dólar está ameaçado, afirma um dos pais do Plano Real

Segundo André Lara Resende, o mundo pode estar encerrando um ciclo iniciado após a Primeira Guerra Mundial, com o fim do padrão-ouro.

“Não há mais dúvida, o predomínio do dólar está ameaçado”, escreve André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, em artigo publicado nesta quinta-feira (23). Segundo ele, o mundo pode estar encerrando um ciclo iniciado após a Primeira Guerra Mundial, com o fim do padrão-ouro.

Sem o dólar, ele destaca dois cenários possíveis. Um deles é a fragmentação crescente do comércio e do sistema financeiro internacional, com a formação de blocos regionais, aumentando o risco de conflitos armados e a redução do bem-estar global. Outro cenário é a China assumir o papel de detentora da moeda mundial.

O artigo, publicado na CEBRI-Revista, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, faz um breve histórico da ascensão do dólar, discutindo em detalhe as condições necessárias para se tornar uma moeda de reserva internacional – e explorando como, nos últimos tempos, o governo Donald Trump vem minando cada uma delas.

“A fúria desorganizadora do presidente americano nada poupa”, afirma no artigo Lara Resende, que é conselheiro do Cebri. “Das inúmeras frentes em que se propõe a desmontar a ordem estabelecida, o recente ataque à independência do Fed talvez seja a mais crítica e potencialmente perigosa para o dólar e a estabilidade do sistema financeiro internacional.”

Ele diz que um país que tem a moeda de reserva internacional tem vantagens, mas pondera que também há algumas desvantagens. Do lado bom, o país pode financiar os compromissos externos sem ter que acumular reservas, ou seja, pode ter déficits recorrentes. E sua dívida tem juros mais baratos, porque é percebida como sem risco de crédito.

Do lado ruim, há o chamado paradoxo de Triffin, formulado pelo economista belga Robert Triffin na década de 1950: quem emite a moeda de reserva tem a obrigação de fornecer liquidez internacional para o bom funcionamento do comércio, exigindo que tenha déficits recorrentes e crescentes.

O artigo descreve como, no pós-guerra, os Estados Unidos passaram de superavitários para deficitários – e todos os ganhos e percalços nesse período – e chega à situação atual. E pontua como Stephan Miran, ex-chefe do Conselho de Assessores Econômicos de Trump, que atualmente exerce um mandato-tampão como membro do Federal Reserve (Fed), descreve, em um texto de 2024, os incômodos incorridos pelo emissor da moeda.

“Segundo Miran, a necessidade de manter déficits externos para suprir a liquidez internacional levou à sobrevalorização do dólar, o que, por sua vez, provocou a desindustrialização americana”, afirma Lara Resende, referindo-se ao texto “A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System” (numa tradução livre, “Guia do Usuário para a Reestruturação do Sistema de Comércio Global”). “O ensaio de Miran é um ataque direto às condições necessárias para ser o detentor da moeda de reserva mundial”, segue Lara Resende.

E, além disso, há uma prática mais concreta de enfraquecimento dos seis pilares que, na visão consensual dos especialistas, sustentam a condição de uma moeda internacional de reserva. Um deles é a estabilidade macroeconômica, ou seja, políticas fiscal e monetária que mantenham a inflação baixa e sob controle – que estão sendo minadas com a pressão sobre o Fed para reduzir a taxa básica de juros e a aprovação de um orçamento com cortes de impostos e aumentos de gastos.

Outra condição é ter um Banco Central independente de pressões políticas, algo que está sendo violado com as ameaças de demissão de Jerome Powell e ações concretas para remover uma das integrantes do comitê de política monetária, Lisa Cook.

Um terceiro pilar que está sendo abalado é o princípio de liberdade nos fluxos de capitais, com a inexistência de controles cambiais. Miran defendeu, em seu ensaio, que sejam taxados os detentores estrangeiros de títulos públicos americanos e o alongamento compulsório da dívida pública.

Também é preciso ter mercados financeiros líquidos e profundos – qualidades que o dólar continua a ter, mas o recente aumento da volatilidade de preços dos títulos públicos americanos “é o primeiro sinal de alerta em relação à condição que exige preços transparentes e relativamente estáveis”.

Todos os conflitos de Trump com o ordenamento legal colocam em xeque a condição de ter um mercado financeiro líquido e profundo. O uso do dólar como arma de guerra, com a aplicação de sanções e sequestro de reservas, afronta o princípio de que a moeda de reserva deve ser tratada como um bem público, não como um instrumento de poder econômico e geopolítico.

“A multiplicação de moedas digitais privadas atreladas ao dólar ameaça tomar espaço do dólar como moeda de pagamentos, nacional e internacional”, diz Lara Resende. “Sua proliferação irá reduzir a transparência, facilitar a evasão fiscal e as transações ilícitas, além de aumentar o risco de corridas e ataques especulativos, que podem forçar a venda desordenada dos títulos públicos americanos que mantêm como lastro.”

A China pode ocupar o lugar do dólar? “Veremos se, de fato, este será o papel exercido pela China, ou se ela será apenas o agente acelerador da destituição do dólar”, diz Lara Resende.

O texto na íntegra pode ser lido aqui.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

FONTE: https://valor.globo.com/financas/noticia/2025/10/23/predominio-do-dolar-esta-ameacado-afirma-um-dos-pais-do-plano-real.ghtml