Associação Brasileira dos Jornalistas

Seja um associado da ABJ. Há 16 anos lutando pelos jornalistas

Reflexões sobre a religião e seus propósitos

Entre fé e razão: por que o raciocínio crítico deve ser o guia na busca por justiça e dignidade.

Lamentavelmente, não obstante já estarmos entrando no segundo quarto do século XXI, na sociedade brasileira e em quase todas as outras do mundo, os conflitos de caráter religioso continuam muito presentes.

A experiência adquirida ao longo da vida me levou a deduzir que o fator religião não deixa de se fazer sentir em razão dos avanços técnicos que a humanidade vai acumulando. Porém, ainda que há um bom tempo tenha me desvinculado de crenças espirituais, não estou entre os que consideram que a religiosidade, de por si, carregue um significado intrinsecamente negativo. Assim como em quase todos os demais sentimentos humanos, os benefícios ou prejuízos decorrentes do exercício religioso também dependem de vários outros fatores e seus respectivos contextos.

Seguramente, conhecemos inúmeros casos em que a fé religiosa motivou e impulsionou muita gente a enfrentar enormes dificuldades para salvar vidas ou aliviar o sofrimento de gente necessitada. Por outro lado, temos ciência de que algumas das mais terríveis atrocidades foram cometidas por pessoas igualmente imbuídas de inspiração religiosa. Em outras palavras, embora existam inúmeros exemplos em que a religião induz à realização de ações abnegadas, há outros em que ela serve para incitar o cometimento dos mais abomináveis crimes.

Logicamente, a partir de um ponto de vista humanista ou humanitário, tudo o que nos conduz no rumo do bem deve ser considerado como favorável, desejável e até mesmo louvável, seja impulsionado por motivação religiosa ou outra qualquer. Em sentido oposto, absolutamente nada que apregoe ou estimule a maldade deveria ser aceito, nem tolerado, por ninguém de boa índole, mesmo que se recorra a alegações amparadas na religião.

É sabido que, quando estão estimulados pela fé, os seres humanos se movimentam com muito mais tenacidade e potência do que em condições normais. Por isso, eles são capazes de ultrapassar barreiras que antes pareciam intransponíveis. Entretanto, uma vez mais, isto também se aplica para o lado ruim. Certas monstruosidades que costumam horrorizar e causar enorme aversão são cometidas sem hesitação, quando prevalece a crença de que se está agindo em conformidade com os desígnios de seres superiores.

Portanto, em síntese, o sentimento religioso pode servir ao bem, mas também promover à prática do mal. Se decidirmos convencionar que tudo o que está associado ao bem tem a ver com a figura de Deus, e que tudo que se vincula ao mal diz respeito ao diabo, chegaremos à conclusão de que as proposições religiosas podem ser tanto coisas de Deus, como do diabo. Em minha compreensão, para que saibamos a quem estamos favorecendo nesta disjuntiva, é de muita relevância que meditemos sobre os fundamentos daquilo que nos estamos propondo defender ou promover.

Mas, quais são os instrumentos de que dispomos para fazer uma tal avaliação? Alguns poderiam sugerir a leitura e a observação dos preceitos estipulados em textos tidos como sagrados, por exemplo, a Bíblia e os Evangelhos, dos cristãos, a Torá, dos judeus, o Alcorão, dos muçulmanos, o Pali canon, dos budistas, etc. Contudo, ainda que em todos eles haja muitas orientações que nos predicam coisas valiosas, existe sempre a possibilidade de interpretações que nos direcionem em um sentido, ou em seu oposto. Por isso, o instrumento mais eficaz, com o qual todos os humanos estão dotados desde o nascimento, é a CAPACIDADE DE RACIOCINAR. Em outras palavras, a melhor forma de concluir se estamos trilhando o caminho do bem ou do mal é com o exercício da razão.

Dizer que é através do uso da razão que poderemos aferir o que é, ou não, conveniente para nós não significa que estejamos ignorando o posicionamento de quem é religioso. Pelo contrário. Aqueles que entendem que todos os seres vivos são criaturas de Deus devem concordar que este criou o ser humano com a exclusiva capacidade de raciocinar, de diferenciar o bem do mal. Então, por que Deus iria se sentir contrariado ao recorrermos ao principal instrumento com o qual nos dotou para definir tais questões? Não faz sentido acreditar que, nos momentos mais cruciais, Deus nos proibiria usar uma capacidade com a qual nos gerou. Conforme já convencionamos, Deus representa sempre a busca do bem. Por conseguinte, em todas as situações, é fundamental que apelemos à razão que ele nos deu para dirimir as dúvidas com as quais nos deparamos.

Tendo isto em mente, jamais deveríamos acatar nada que uma análise criteriosa nos indique tratar-se de algo maligno, injusto ou perverso. Podemos exemplificar isto com o clássico caso daqueles que citam os textos bíblicos para justificar as ações do sionista Estado de Israel na expulsão e extermínio do povo palestino. Segundo os defensores desta interpretação, os sionistas teriam o direito de agir dessa maneira com os palestinos, pois os judeus são o povo escolhido de Deus, que entregou a eles aquelas terras. Qual deveria ser nossa postura diante disto?

Colocando nossa razão em funcionamento, nos perguntaríamos: Deus poderia ser tão discriminador, tão racista, tão injusto, a ponto de ter um povo escolhido, em detrimento de todos os demais? É lógico que chegaríamos à conclusão de que tal comportamento nada tem a ver com Deus, pois racismo, discriminação e injustiça são qualidades malignas, ou seja, são características do diabo.

Por sua vez, muitas igrejas, em especial as estreitamente ligadas ao bolsonarismo, difundem entre seus seguidores a ideia de que a prática do aborto é o pior dos crimes imagináveis e, por isso, não deve ser tolerado sob nenhuma hipótese. O que podemos argumentar em relação a este ponto?

É claro que, diferentemente da hipocrisia que caracteriza boa parte dos dirigentes de tais igrejas, este problema nos preocupa. Queremos reduzi-lo ao mínimo possível, pois sabemos que o aborto é sempre traumático para a mulher. Porém, isto não se consegue por meio de uma proibição insensata e cruel, que costuma agravar as tragédias e o sofrimento das mulheres pobres.

As mulheres ricas e as de classe média, inclusive as filhas e esposas de muitos pastores, por terem condições de acessar clínicas particulares de bom nível, vão continuar abortando de forma regular, como sempre fizeram. Mas, as jovens pobres são levadas a colocar suas vidas em risco e, todo dia, muitas delas morrem por atenção inadequada em processos abortivos precários.

Se quisermos de verdade reduzir drasticamente o número de abortos, temos de deixar de lado a hipocrisia e reconhecer que se trata de uma questão de saúde pública. O método mais efetivo para alcançar este objetivo é através de uma educação sexual séria, que oriente tanto as mulheres como os homens sobre as causas e as consequências da gravidez precoce, ou indesejada. No entanto, impedir que as mulheres exerçam o direito de interromper a gravidez nos casos já previstos em lei é uma crueldade imensa, uma perversidade que nada tem a ver com a defesa da vida, uma monstruosa insensibilidade com o sofrimento alheio. É uma maldade inteiramente oposta aos ensinamentos de Jesus, ou seja, é coisa do diabo.

Em nosso país, outro dos temas ao qual algumas igrejas se aferram com grande intensidade é o relacionado com a defesa da família. Sem dúvidas, é importante garantir que as famílias possam viver com justiça e dignidade. Todavia, certos líderes de igrejas parecem achar que Deus não estaria muito preocupado com as centenas de milhares de crianças desamparadas, perambulando pelas ruas em total desamparo, sofrendo fome e passando outras privações. Para eles, a fúria do Senhor adviria de sua ojeriza ante a possibilidade de que se formalizem casamentos homoafetivos. É como acreditar que a prioridade de Deus fosse impedir que uma pessoa sinta amor por alguém do mesmo gênero, e não pôr fim às grandes mazelas que infelicitam a tantos no mundo.

Inegavelmente, o que de fato possibilita que as famílias vivam com dignidade são as condições básicas nas quais elas estão inseridas. Com os parcos recursos de que dispõem, é comum que tenhamos pais e mães passando a maior parte de seu tempo no trabalho, o que lhes impede de dedicar aos filhos a atenção necessária para sua formação como cidadãos e sua educação para enfrentar os problemas da vida. Por isso, é evidente que todos os que levam Deus no coração devem mesmo ter muito em conta a situação familiar. Consequentemente, precisam estar na linha de frente da luta para eliminar às injustiças sociais que desestruturam as famílias. Um primeiro passo neste rumo seria aderir efetivamente à campanha para acabar com o sistema de jornadas 6 por 1. Então, o engajamento na luta pela defesa da família também pode unificar a todos, sejam eles religiosos ou não.

Assim como nos pontos mencionados com anterioridade, não há nenhum impeditivo para que religiosos ou não religiosos caminhem e lutem juntos para a construção de um mundo mais justo e solidário. Deus não pode ser um egoísta que só aceite aquilo que leve seu rótulo.

Portanto, um Deus que mereça ser respeitado e seguido jamais se oporia a nada que objetive oferecer uma vida mais digna para as maiorias populares tão somente pelo fato de que aqueles que estão empenhados nessa empreitada não atuem evocando seu nome. Por sua vez, os não religiosos precisam admitir que nenhum processo de transformação social que beneficie o conjunto do povo deixaria de ser válido e aceitável apenas por estar sendo conduzido por pessoas que professam uma religião.

Religiosos e não religiosos podem todos confluir e seguir no mesmo caminho, desde que o que almejem edificar seja um mundo onde a dignidade, a justiça e a solidariedade sejam os valores mais destacados.

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/reflexoes-sobre-a-religiao-e-seus-propositos