Dino e Cappelli foram a única dupla de leões do governo que enfrentavam e aterrorizavam os lobos bolsonaristas.
A segurança pública parece ser um problema insolúvel para o governo Lula, tal como o nó górdio parecia ser no mito grego. A lenda conta que um antigo rei da Frígia (Ásia Menor) morreu sem deixar herdeiro. O oráculo, consultado, indicou que o primeiro que chegasse à cidade em uma carroça puxada por bois seria o novo rei. Górdio, um simples camponês, chegou nessas condições e foi nomeado rei. Para não esquecer seu passado humilde, colocou a carroça no templo de Zeus e a amarrou com um nó insolúvel. Sucedido pelo seu filho Midas, este morreu também sem deixar herdeiros. O oráculo foi consultado e profetizou que aquele que desfizesse o nó conquistaria toda a Ásia.
Quando Alexandre, o Grande, quinhentos anos depois, andava pela Frígia, ouviu falar da lenda e quis observar o feito de Górdio, dirigindo-se ao templo de Zeus. Ao examinar o problema, simplesmente puxou a espada e cortou o nó. Como se sabe, ele conquistou a Ásia.
A lenda quer dizer que, para problemas que parecem insolúveis, é necessário criatividade e inovação para resolvê-los. A pergunta que deve ser feita agora é se Lula será um Alexandre capaz de cortar o nó górdio da segurança pública. Ao estarmos na véspera do quarto ano de mandato do Lula 3, não há sinais de que o presidente esteja disposto a “desembainhar a espada” e cortar o nó.
A rigor, o governo vem errando neste tema desde o início deste mandato por conta de uma leitura equivocada que fez da conjuntura. Politicamente, o ano de 2023 começou com o terremoto da tentativa de golpe do 8 de janeiro. A invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes revelaram uma enorme crise de autoridade. O governo foi pego de surpresa e as forças de segurança nacionais se mostraram desarticuladas, desinteligentes e incompetentes.
Dois atores agiram rapidamente para colocar ordem na casa: Flávio Dino e Ricardo Cappelli. Na tipologia dos líderes “meio homem e meio animal” e na necessidade do desdobramento da parte animal em leão e raposa, ambos, Dino e Cappelli, se revelaram leões. Nomeado interventor na segurança pública, em pouco mais de 20 dias, Cappelli entregou a casa minimamente arrumada.
Dino e Cappelli, um ministro da Justiça e outro como secretário-executivo do ministério, foram a única dupla de leões do governo que enfrentavam e aterrorizavam os lobos bolsonaristas. Mas era preciso enfrentar também as facções do crime organizado, que formavam e formam pequenos Estados dentro do Estado.
As pesquisas de opinião vêm indicando, faz tempo, que a segurança pública é a primeira ou a segunda preocupação dos brasileiros. Em 2023, o Brasil teve mais de 46 mil assassinatos e, em 2024, foram quase 40 mil, números compatíveis com guerras. Só as polícias mataram mais de 6 mil pessoas. De acordo com o Fórum Nacional de Segurança Pública, cerca de 28,5 milhões de pessoas são afetadas pelas organizações criminosas e pelas milícias.
As facções criminosas estão na Faria Lima, na Amazônia, controlam comunidades, estão infiltradas nas polícias, na política, nas igrejas e em várias redes de negócios ilícitos e lícitos que movimentam bilhões de reais. Essas organizações ramificam uma série de outros crimes menores que atormentam a sociedade e semeiam o medo em todos os lares. Assassinatos espetaculares como o do delegado Ruy Ferraz Fontes ou de Antônio Vinicius Gritzbach no Aeroporto de Guarulhos, assim como o novo cangaço, sinalizam uma ousadia e um poder sem limites. O caso do aeroporto revelou que policiais se tornaram guarda-costas de líderes do PCC.
Governadores, particularmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, decidiram agir implementando a pena de morte extrajudicial. O massacre nas comunidades da Penha e do Alemão elevou ao apogeu essa estratégia. Foi planejada de forma meticulosa e executada em um momento oportuno para colocar o governo Lula na defensiva e para tornar a bandeira da segurança pública o mote principal da direita nas eleições de 2026.
Os massacres da pena de morte extrajudicial se mostraram um fracasso ao longo da história, além de um repugnante espetáculo anticivilizatório. Mas a população, apavorada com tantos crimes, aplaude.
Já o governo federal, na sua inépcia, imagina ser possível resolver o problema da segurança pública com boas leis. O aperfeiçoamento da legislação, por si, não resolve nada. As boas leis precisam de bons operadores. A PEC da Segurança Pública e o PL Antifacções, encaminhados pelo governo ao Congresso, não foram boas soluções. O PL sofreu uma dura derrota na Câmara e permitiu violentos ataques da extrema direita parlamentar, sem que fossem rebatidos com a devida eficácia.
Ao tirar Flávio Dino do Ministério da Justiça, suscitando também a saída de Cappelli, o governo optou por escolher pessoas com perfil low profile, discretas, na Justiça e Segurança Pública – Ricardo Lewandowski e Mario Sarrubbo. Excelentes pessoas: Lewandowski foi ótimo como ministro do STF e Sarrubbo teve uma irretocável carreira no Ministério Público de São Paulo. Mas estão deslocados nas atuais funções.
Desde os primórdios das instituições políticas e sociais, a segurança pública sempre foi um dos maiores bens públicos requeridos pelos povos em troca de pagamento de impostos e de apoio aos governos. Garantir segurança pública é um dos maiores indicadores de um bom governo. Não garantir é índice de mau governo. A partir das constituições democráticas e republicanas modernas, segurança pública passou a ser definida como um direito fundamental das pessoas.
A segurança pública é também um elemento constitutivo do exercício da hegemonia. Na acepção clássica maquiaveliano-gramsciana, o exercício da hegemonia, entre outros fatores, requer uma combinação de uso da força e de consenso em proporções variáveis segundo as circunstâncias e as conjunturas. É evidente que vivemos uma conjuntura histórica em que se requer afirmação de mais autoridade, de uso da força coercitiva do Estado sem que isto signifique, necessariamente, violência e matanças. É isso que o governo federal parece não entender.
Lula tem pouco tempo para agir com inovação e eficácia, visando cortar o nó górdio da segurança pública para navegar de forma mais confortável em 2026. Não bastam ações episódicas como a bem-sucedida Operação Carbono Oculto. A Polícia Federal, a Receita Federal, o Coaf e a Polícia Rodoviária Federal não precisam esperar o aperfeiçoamento da legislação para agir. Se o governo quiser recuperar o terreno perdido, precisa engrenar suas forças de segurança para que possam fazer operações sistemáticas e continuadas no combate ao crime organizado. Pode fazê-lo em parceria com forças estaduais – polícias e Ministério Público.
A legislação vigente permite que essas operações sejam feitas. Diferenciando-se da execução da pena de morte extrajudicial, as operações das forças federais devem estruturar-se na inteligência, na investigação, na eficácia, atacando principalmente os comandos e as estruturas financeiras das organizações criminosas. Não existem motivos nem razões para que isso não seja feito. São necessários operadores competentes, vontade política e comando para que o governo reverta esse quadro adverso no tema da segurança pública.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de “Liderança e Poder”.
Foto: Agência Brasil
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/seguranca-publica-o-no-gordio-do-governo