Brasil deve criar legislação anti-imperialismo capaz de proteger suas autoridades e bancos das arbitrariedades da Magnitsky, reafirmando a soberania nacional.
Um remédio criado para salvar vidas pode, se ministrado sem critério, transformar-se em veneno. A Lei Magnitsky foi pensada como antídoto contra a corrupção e a violência de oligarcas russos, mas hoje é aplicada como se fosse uma dose forçada em pacientes que jamais consentiram em ingeri-la. O que nasceu como cura tornou-se uma droga pesada e administrada à força, destruindo sem dó nem piedade organismos democráticos alheios. Essa distorção escancarou-se em julho de 2025, quando o governo de Donald Trump decidiu sancionar o ministro Alexandre de Moraes, sua esposa e até o escritório da família, a Fundação Lex.
Foi nesse contexto que, no dia 30 de setembro, o ministro Gilmar Mendes trouxe à cena a necessidade urgente de uma lei antiembargo nacional. Em evento público, disse que o Congresso não pode assistir calado a tentativas de deslegitimar a atuação constitucional de nossas autoridades por meio de sanções impostas do exterior. Para ele, é hora de superar de vez o complexo de vira-lata e criar instrumentos jurídicos que, à semelhança dos europeus, tornem ineficazes, no território brasileiro, medidas tomadas unilateralmente em Washington.
O ataque a Moraes e o ensaio imperial
As sanções contra Alexandre de Moraes não foram apenas contra um homem; foram contra a independência de uma Suprema Corte. Ao arrastar para a lista até a esposa, Viviane Barci de Moraes, e o escritório familiar, os Estados Unidos insinuaram que poderiam ditar limites ao exercício da magistratura brasileira.
Essa ofensiva política deixou claro que, sem arcabouço jurídico interno, o Brasil se torna presa fácil de pressões externas.
A ironia é cruel: uma lei criada por Obama para punir torturadores russos agora serve a Trump como metralhadora contra ministros que não lhe são convenientes. É a apropriação de um instrumento legítimo para fins espúrios — algo equivalente a transformar um estetoscópio em porrete. É como se o presidente americano fosse aquele martelo que vê os demais países como pregos.
A lei que o Brasil precisa
Gilmar Mendes evocou os precedentes da União Europeia, que desde 1996 mantém o Blocking Statute para anular efeitos de sanções extraterritoriais. Inspirado nisso, o Brasil pode estruturar sua lei em quatro grandes pilares. Mas, ao contrário de meros enunciados genéricos, esses pilares precisam de explicações concretas, que deem segurança às autoridades, às instituições financeiras e à própria democracia.
1. Ineficácia jurídica das sanções externas – A lei deve declarar sem validade, dentro do território nacional, quaisquer sanções estrangeiras que não tenham respaldo em decisão da Justiça brasileira ou em organismos multilaterais reconhecidos. Isso significa que, se um banco ou empresa brasileira receber ordem de bloqueio baseada na Magnitsky, não poderá executá-la automaticamente. Só valerá se houver homologação judicial no Brasil, com contraditório e ampla defesa. Essa regra não é detalhe semântico: é a muralha que separa soberania de submissão.
2. Proibição de cumprimento por instituições brasileiras – Não basta declarar a ineficácia; é preciso impor dever. Bancos, seguradoras, corretoras e empresas instaladas no Brasil deverão ser proibidas de dar eficácia a sanções extraterritoriais sem ordem judicial nacional. Caso o façam, estarão sujeitas a multas severas, responsabilidade administrativa e possibilidade de regresso contra quem tenha imposto a medida. Esse dispositivo coíbe o chamado overcompliance — prática pela qual empresas, por medo de perder negócios nos EUA, obedecem a sanções sem sequer questionar sua legalidade.
3. Porto seguro regulatório para bancos e empresas – Uma lei antiembargo precisa oferecer segurança jurídica. Para isso, caberá ao Banco Central e ao Ministério da Justiça criar um sistema de licenciamento que permita às instituições financeiras preservar contas, contratos e operações de clientes sancionados no exterior. Assim, um banco brasileiro que mantiver vínculo com uma autoridade injustamente punida não ficará vulnerável a retaliações internacionais, porque estará amparado por autorização expressa do Estado brasileiro. É a garantia de que resistir não significará suicídio comercial.
4. Contramedidas proporcionais contra abusos – Por fim, a lei deve prever instrumentos de reciprocidade. Se um país aplicar sanções extraterritoriais abusivas contra autoridades brasileiras, o governo poderá suspender preferências tarifárias, restringir participação em licitações públicas, reter autorizações de funcionamento ou levar o contencioso a organismos multilaterais. Não se trata de alimentar retaliação cega, mas de criar mecanismos de dissuasão: quem ferir a soberania brasileira sentirá custos políticos e econômicos.
A ironia da moral seletiva
Os Estados Unidos, que se arvoram em guardiões da liberdade, usam a Magnitsky como se fossem árbitros planetários da virtude. Mas há algo de profundamente irônico nisso: quem se reserva o direito de punir os outros raramente admite ser julgado. É como aquele vizinho que, em nome da ordem no quarteirão, invade casas alheias para corrigir problemas — mas jamais admite um inspetor em sua própria porta.
O Brasil não pode se resignar à lógica de que uma lei estrangeira decida quem é legítimo ou ilegítimo em nossas instituições. O ataque a Moraes e à Fundação Lex revelou que estamos diante de um veneno travestido de remédio.
Sem uma lei antiembargo clara, robusta e eficaz, o país seguirá refém de arbitrariedades travestidas de justiça.
Com essa lei soberana, o Brasil poderá dizer ao mundo que direitos humanos não se confundem com oportunismo político e que soberania não é palavra decorativa, mas contrato vivo com o povo brasileiro.
Foto: Embaixada dos EUA/Divulgação
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/sem-lei-soberana-urgente-o-brasil-fica-refem-das-arbitrariedades-da-magnitsky