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Soberania digital é a nova fronteira do poder global

Controle de dados e redes é a nova arma das potências. O Sul Global precisa escolher: ser autor de seu destino digital ou apenas fornecedor de dados.

Viver sem soberania digital é como habitar uma casa que não nos pertence. Há teto sobre a cabeça, paredes que protegem da chuva, mas as chaves ficam sempre nas mãos de outros. Essa é a condição do Sul Global: sujeito a regras externas e dependente de tecnologias alheias.

No século XXI, soberania não se mede apenas por fronteiras físicas ou arsenais militares. Ela é determinada pela capacidade de um país proteger dados, controlar redes e governar plataformas. Quem não domina o espaço digital perde autonomia política e econômica, tornando-se refém invisível de poderes externos.

Estados Unidos e o poder das plataformas

Nos Estados Unidos, soberania digital confunde-se com hegemonia. Google, Amazon, Microsoft, Meta e Apple projetam poder além das fronteiras, moldando a vida digital de bilhões. Países que dependem de softwares do Vale do Silício ou armazenam dados em servidores norte-americanos entregam parcelas críticas de sua autonomia. A nuvem aprisiona.

O discurso oficial norte-americano fala em liberdade digital, mas o que está em jogo é a manutenção de sua primazia global. Washington compreendeu que o controle de dados é tão estratégico quanto o petróleo. A soberania digital, para os EUA, significa que o mundo inteiro continua orbitando em sua esfera.

China aposta na blindagem

Para a China, soberania digital significa blindagem. Daí a noção de “ciber-soberania”: o Estado como árbitro supremo do que circula em seu espaço digital. O Grande Firewall simboliza esse controle, mas o ponto crucial foi a decisão de não permitir a saída de dados do território nacional.

Essa estratégia garantiu a Pequim o insumo mais precioso da era digital: os dados. Em 2023, a China lançou sua proposta de governança global da inteligência artificial. O projeto defende uma abordagem centrada nos povos, tentativa de consolidar uma nova ordem internacional em que a autonomia tecnológica não seja privilégio ocidental.

Europa escolhe a regulação

A União Europeia, consciente de sua fragilidade tecnológica, decidiu usar o poder normativo como arma. Criou o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), a Lei dos Serviços Digitais (DSA) e a Lei dos Mercados Digitais (DMA), que transformaram Bruxelas em árbitro global de regras digitais e inspiraram legislações em outros continentes.

Esses instrumentos obrigam gigantes da tecnologia a respeitar padrões de privacidade, combater abusos em plataformas e limitar práticas monopolistas. A estratégia europeia é transformar regulação em soberania, criando uma forma de defesa em meio ao confronto entre China e Estados Unidos. É proteção e afirmação geopolítica.

O Sul Global diante do espelho

O conceito de Sul Global vai além da geografia. Ele designa países historicamente marginalizados — América Latina, África, Ásia e Oriente Médio — que carregam cicatrizes coloniais e dependências estruturais. No mundo digital, essa assimetria se repete. Poucos possuem centros de dados autônomos ou cadeias completas de semicondutores.

A fragilidade foi evidenciada no Fórum Acadêmico do Sul Global, realizado em Xangai em maio de 2024. Ali, especialistas denunciaram uma crise profunda: empresas locais rendem-se à dependência das big techs, adotando uma postura derrotista. Xiong Jie, secretário-geral do Fórum, disse que falta controle sobre os novos meios de produção digitais.

O mais preocupante é que, um ano e meio depois, nada mudou. E, no universo das tecnologias digitais, o tempo corre em outra escala: um dia ou uma semana pode equivaler a um ano. Permanecer parado é, na prática, retroceder. A inércia do Sul Global ameaça perpetuar a dependência colonial.

O consultor ganês Kambale Musavuli apontou como a África tem suas políticas digitais moldadas de fora para dentro. Projetos como a Smart Africa, financiada pela GIZ alemã, definem estratégias de inteligência artificial sem autonomia plena dos governos. O que deveria ser cooperação frequentemente transforma-se em tutela e perpetuação da dependência.

O Brasil e a nuvem “soberana”

No Brasil, o debate surge com a chamada “nuvem soberana”, ofertada a órgãos como Serpro e Dataprev. O sociólogo Sérgio Amadeo alerta: trata-se de dependência vendida como independência. Sem política robusta de dados, gestores públicos tornam-se alvos fáceis do lobby estrangeiro, entregando informações vitais em contratos desiguais.

O Cloud Act, legislação dos Estados Unidos aprovada em 2018, garante acesso de autoridades americanas a dados de empresas nacionais armazenados em qualquer país. É a tradução jurídica da velha política imperial. Edward Snowden já havia revelado, em 2013, práticas de intrusão. Agora, elas possuem cobertura legal explícita.

A comparação com a China é inevitável. Desde cedo, Pequim impôs a permanência dos dados em território nacional. Transformou-os em recurso estratégico, como petróleo e ferro no século passado. A soberania digital, nesse caso, funciona como pele do corpo: sem ela, qualquer corte externo fere de forma irreversível.

Alternativas e caminhos possíveis para o Sul Global

A saída exige três frentes simultâneas. Primeiro, infraestrutura: cabos, satélites, data centers, semicondutores. Segundo, cooperação regional: BRICS, União Africana e Mercosul precisam partilhar custos e normas comuns. Terceiro, formação de talentos: sem especialistas em ciência de dados, cibersegurança e IA, a emancipação digital jamais deixará de ser promessa.

Entre utopia e urgência

Soberania digital não nascerá espontaneamente. É preciso estratégia e visão política. Cada apagão, cada bloqueio econômico e cada episódio de desinformação revela o preço da dependência. Estados Unidos escolheram hegemonia, China blindagem, Europa regulação. Ao Sul Global resta construir um caminho próprio que una liberdade, segurança e desenvolvimento.

Como estudioso da inteligência artificial na academia desde meados de 2022, vejo com enorme preocupação essa nova forma de colonialismo, que aprofunda a desigualdade entre nações ricas e pobres, entre o grande capital e os trabalhadores, entre centros de poder e periferias do mundo.

Soberania digital não é detalhe técnico, tampouco luxo de países ricos.

É a fronteira decisiva da dignidade contemporânea. Anotem isso e depois me cobrem.

A nação que negligencia — ou faz vista grossa — para a soberania digital aceita morar em casa alheia, sob teto emprestado, sem nunca possuir as chaves que abrem as portas do próprio futuro.

Essa é a batalha de nossa geração.

FOTO: Wikimedia Commons

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/soberania-digital-e-a-nova-fronteira-do-poder-global