Associação Brasileira dos Jornalistas

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Sobre “imperadores”, “impérios” e Imperialismo

A crise Brasil-EUA expõe o imperialismo moderno e a urgência de uma resposta unificada da América Latina contra a arrogância das superpotências.

Na reunião ministerial de 26/08/2025, o Presidente Lula voltou a chamar Donald Trump de “imperador”, buscando impor sua vontade aos demais países e fazendo valer suas leis – e não só a Lei Magnitsky – sobre outros países, incluindo, claro, o Brasil. Lula acertou no ponto: um império, ou seu modo de agir chamado de imperialismo, se caracteriza pela imposição de suas leis – leia-se, sua soberania nacional – sobre as demais legislações nacionais, ou seja, por sobre outras soberanias, que são, então, desconsideradas em seu próprio território. No Império Romano, durante o reinado de Herodes entre os anos 31 a.C. e 1 d.C., persistia a existência de um “Reino da Judeia” e seu rei; contudo, quem controlava de fato o poder era o governador romano e suas legiões. Na Índia sob domínio britânico, persistiam também os rajas e suas cortes, embora o poder de fato permanecesse nas mãos dos britânicos. Embora tenhamos inúmeras definições de “Imperialismo”, como Johan Hobson, por exemplo, definiu “Imperialismo” já em 1902, como a decorrência de uma atitude derivada da combinação de nacionalismo com interesses empresariais, originando um grande esforço de expansão. Já Joseph Schumpeter, em 1919, definiu o Imperialismo como uma espécie de herança não superada do Antigo Regime europeu, pré-Revolução Francesa de 1789, pela qual as classes aristocráticas, ditas “guerreiras”, assumiam o controle de diversas instituições sociais, como as Forças Armadas, a Diplomacia e mesmo as Óperas, combinando arcaísmo social e dinamismo econômico. Contudo, foi Vladimir Lênin, em 1917, quem cunhou a mais ampla definição de “Imperialismo” – acompanhando Hobson – Lênin caracterizou o Imperialismo moderno como a junção do extremo nacionalismo, racismo e militarismo, visando uma partilha econômica do mundo, caracterizando uma “etapa”, ou época, marcada pela extrema financeirização do capitalismo.

Os Impérios poderiam utilizar formas de dominação direta – e então surgiam as colônias; ou formas indiretas de dominação, contando neste caso com uma “classe de apoio” no interior dos países alvo dos interesses imperialistas. Na maioria das vezes, entregavam a gestão cotidiana aos “nativos” e reservavam para si mesmos, os núcleos imperiais, o controle do poder militar, da segurança e as grandes diretrizes econômicas que direcionavam para as metrópoles os fluxos comerciais e a arrecadação de impostos, ao mesmo tempo que garantiam os países dominados como mercados para suas indústrias e seus capitais. Assim, ao longo da História, os impérios conviveram bem com governos locais de títeres e colaboradores.

A fala de Lula nos remete diretamente para esta “época dos impérios”. Tratou-se de uma reação clara e proporcional à imposição de sanções contra funcionários públicos brasileiros em decorrência de sua própria função de ofício. Assim, um ministro do Supremo Tribunal Federal foi “punido” pela Lei Magnitsky e funcionários do Ministério da Saúde, e mesmo familiares, tiveram vistos cancelados em virtude de trabalharem no Programa “Mais Médicos”. Possivelmente, ministros do Governo Lula, outros funcionários públicos e ministros das cortes superiores também tiveram seus vistos de entrada nos Estados Unidos cancelados como “punição”. Contudo, foi o tarifaço sobre as exportações brasileiras de 30/07/2025 que fez, decididamente, surgir à luz os interesses da Administração Trump em atingir fortemente a economia brasileira. A partir daí, as declarações do Presidente Lula sobre a arrogância de Trump em agir como um “imperador do mundo” tomaram sentido e acuidade.

Desde então, podemos destacar três elementos característicos que começam a se desenhar no profundo nexo entre política interna e política externa no (e do) Brasil. Em primeiro lugar, devemos destacar o debate fundacional da própria disciplina “Relações Internacionais/RI” como um campo de estudos, pesquisas e acalorados debates. O ponto de partida da fundação do campo, enquanto espaço acadêmico profundamente imbricado nas relações – e por vezes, nos corredores – do poder se dá com a publicação, em 1833, da obra de Leopold von Ranke (1795-1886), “As Grandes Potências/ Die Groβemächte”. Nesta obra, profundamente voltada para as lutas pela unificação da Alemanha, superando as diversas soberanias principescas que dividiam a nação alemã, Ranke defende acirradamente a autonomia das relações internacionais em face das determinações internas e das lutas sociais. Ranke, um áulico até o último fio da barba, entendia que os dois princípios estavam em luta pela unificação alemã – o “princípio monárquico” e o “princípio democrático”, que por sua vez se tornaria revolucionário a partir de 1848 e de 1871. Por essa razão, o temor da revolução não deveria determinar, nos seus embates, o destino inevitável da grandeza do Estado, lançando as bases para o conceito de “Razão de Estado”, que mais tarde seu discípulo Friederich Meinecke (1862-1954) – numa leitura nacionalista e pangermânica de Maquiavel e Thomas Hobbes – constituiria no conceito de “Razão de Estado”. Tratava-se de uma ideia acima da ética, e mesmo da moral, dos indivíduos, dando ao Estado condições e legitimidade para agir ali onde o indivíduo deveria se deter. Um desses limites – matar pessoas, por exemplo – era vedado ao indivíduo, mas autorizado, e mesmo glorificado, sob a forma das guerras. O que o indivíduo não poderia fazer na esfera privada, o Estado era autorizado na esfera pública. Neste debate, o establishment acadêmico e político alemão (com Ranke, Meinecke, Henry Kissinger e outros) se colocou claramente contra o jovem Eckart Kehr (1902-1933), fornecendo as bases teóricas da política externa nacional-socialista e, mesmo, do conceito de “Lebensraum”. Eckart Kehr, malgrado sua morte prematura, ousou trazer os estudos de Marx e Engels para o centro do debate político alemão, denunciando a política externa do império Alemão (1871-1919) e depois as propostas nazistas como expressão das determinações de classe e de grupos sociais como os grandes proprietários de terras, o capital financeiro e os interesses industriais em ascensão na Alemanha.

O interessante, no nosso caso, é que tal debate parece não ter sido visitado no Brasil. O tema, e o campo, das Relações Internacionais/RI, mantém-se, entre nós, como um território em suspenso, onde determinações sociais, inclusive de classe, não se fazem presentes. Tal abstração social das relações internacionais e sua “fulanização” – como, por exemplo, a “Época de Luís XIV”, o “Reinado de Pedro II” ou a “Era Trump” – servem para esvaziar conceitos fundamentais como “Imperialismo”, “área pivô” ou “doutrina” (“Doutrina Monroe”, “Doutrina Bush”, etc.). No entanto, o extremo cuidado, necessário, de Lula ao falar na “política externa de Trump” e no seu “Complexo de Imperador” já desperta na mídia corporativa brasileira arrepios de horror. Boa parte do empresariado, de políticos e colunistas não perde a oportunidade de culpar Lula da Silva pelas exigências intoleráveis da Administração Trump, explicitando claramente as conexões entre política interna/política externa hoje no Brasil.

Na verdade, três elementos balizam a atual crise nas relações internacionais entre Brasil e Estados Unidos. Em primeiro lugar, a extrema “fulanização” das Relações Internacionais, chamando toda a responsabilidade para a família Bolsonaro, o próprio Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo. Tal vetor explicativo – o mesmo que deplora que Lula tenha falado o nome Trump e se horrorizado por tê-lo denominado de “falso imperador” – gostaria de apresentar os Bolsonaro como os únicos responsáveis por todos os males que nos afligem. Me parece, com os anos de estudos de R.I., que considerar a política externa dos Estados Unidos como capturada pela dobradinha Eduardo B.-Paulo Figueiredo é desconhecer as dimensões variadas e profundas da política externa de uma superpotência capitalista. A determinação da política externa dos EUA é definida claramente pela junção de poderosos lobbies, no caso como as “big techs” – a ponta atual do capitalismo e que Lula tem destacado fortemente a atuação nefasta –, pela indústria americana e, lamentavelmente, pelas Federações Sindicais americanas convencidas de que a Administração Trump defende o emprego do trabalhador americano em face do imigrante invasor e da concorrência “desleal” – ponto sublinhado por Trump – do Brasil. Em segundo lugar, mais em direta conexão com o ponto anterior, ao anatematizar duramente Eduardo B. – o que de fato ele merece – deixamos de discutir, e de instruir pedagogicamente o grande público, sobre pontos fundamentais dos interesses econômicos americanos que se chocam com os interesses nacionais brasileiros: a construção e viabilização dos BRICs+, a atuação protagonista do Brasil nas R.I. marcada pelo multilateralismo – como na crítica pioneira e correta nomeação feita por Lula ao genocídio em Gaza e em toda a Palestina – a concorrência brasileira em setores chave da economia americana – como soja, sucos, móveis, calçados, aviônica, aço plano, alumínio em barras, etc… – e, um terceiro ponto, a profunda reorganização geopolítica das Relações Internacionais. Assistimos, neste momento, ao profundo recuo da Europa e da União Europeia, à ascensão pacificamente incontrolável da China Popular, à vitoriosa parceria Rússia-China Popular, à emergência de novos polos de poder – Índia, Vietnã, Turquia, Indonésia, Nigéria, etc. – que tornam cada vez mais difícil para os EUA exercerem uma hegemonia mundial. O mundo ficou muito grande e diverso, ao contrário de 1945 ou 1989, para ser controlado por uma só potência. Neste sentido, os EUA buscam uma reatualização da “Doutrina Monroe”, batendo no México, buscando anexar o Canadá e a Groenlândia, exercendo pressão sobre a Colômbia, ameaçando duramente a Venezuela e Cuba, inclusive com a mobilização militar, como fez com o Brasil em 1964 na “Operação Brother Sam”. Assim, o interesse imediato, de porte geopolítico global, estava dado muito antes deste segundo mandato de Trump, foi buscado por Bill Clinton, com a Alca em 1990, com George Bush e sua busca de uma “cruzada mundial antiterrorista”, por Obama com a espionagem contra a Petrobras e o lançamento das bases do lavajatismo e com Joe Biden e sua política de aliança com Israel e hostilização da Rússia e China. A diferença está na tática, não na estratégia. Ao contrário de Obama e Biden, Trump entende, e creio isso correto, que a ameaça mais poderosa contra o poder americano reside na China e não na Rússia. Daí decorre o projeto de separação da díade Beijing-Moscou e, fundamental para nós, impedir e dificultar as parcerias entre Brasil-China, China-Venezuela, Brasil-Peru, mantendo o controle sobre o continente como reserva de energia, alimentos, minerais etc. Trata-se, pois, de uma ressignificação contemporânea da Doutrina Monroe, agora em perspectiva bem mais global. Bom, atribuir toda essa movimentação, verdadeira ruptura com a tradição e uma “revolução” diplomática, a uma figura como Eduardo B., notoriamente em surto psicótico – no qual busca provar ao pai literalmente “que é um homem” – e cujo resultado, inconsciente, porém provocado, é a morte edipiana do pai. Tal “fulanização” é dar muito poder a uma figura, como já existiram outras, de menor relevância na nossa História, como Domingues Fernandes Calabar (1609-1635) – e há polêmica nesse caso – ou Joaquim Silvério do Reis (1756-1819) – e aqui não há dúvidas –, que ficarão no panteão dos traidores, aqueles que contribuíram para os inimigos da Nação. Enquanto isso, o caráter brutal do imperialismo, e de seu “imperador”, são relegados a um segundo posto ou mesmo banalizados como prática nas relações internacionais.

Devemos voltar para uma ameaça maior, poderosa, que aponta para a necessidade de um grande esforço de união latino-americana e entender Eduardo B. como ele realmente é: nada mais do que uma menção de pé de página na História.

FOTO: Ricardo Stuckert/PR // Wikimedia Commons

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/sobre-imperadores-imperios-e-imperialismo