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STF acua Big Techs para assegurar a liberdade fundamental e livrar a democracia dos crimes virtuais

As plataformas estão preparadas para a responsabilidade que a democracia exige? No Brasil, o STF responde: “Basta!”

As Big Techs, alavancas digitais de imenso poder, têm operado no Brasil com uma permissividade que amplifica danos profundos à sociedade. Elas funcionam como catalisadoras de discursos de ódio, homofobia, transfobia, ataques à vacinação, disseminação de pedofilia, bullying contra adeptos de religiões de matriz africana e desvirtuamento democrático por meio de notícias falsas. A lista de crimes propagados e monetizados por essas plataformas é extensa, revelando uma crise que atinge os alicerces da convivência civilizada.

No cerne desse debate, tenta-se passar por verdade a falácia de que a liberdade de expressão é um direito absoluto. Nada é absoluto em sociedade. Leis e regulações são tão essenciais quanto o ar que respiramos. A liberdade, embora fundamental, não legitima crimes, calúnia, difamação, ridicularização ou demonização de minorias. Tais atos não se confundem com livre expressão.

Eles representam ameaças aos ganhos civilizatórios acumulados ao longo de séculos, que, neste primeiro quarto do século XXI, estão vulneráveis. É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal (STF) avança para responsabilizar as plataformas digitais, redefinindo o papel das gigantes tecnológicas na proteção da democracia e dos direitos fundamentais.

Um julgamento histórico no Supremo

Com um placar de seis votos a um, o STF formou maioria para responsabilizar civilmente as plataformas digitais por conteúdos ilícitos ou criminosos. A decisão, que ainda aguarda os votos de quatro ministros, marca um ponto de inflexão na regulação das Big Techs no Brasil.

O julgamento desafia o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Este artigo isenta as redes sociais de responsabilidade por conteúdos de terceiros, exceto quando descumprem ordens judiciais. A corte busca reconfigurar o arcabouço jurídico do ambiente digital.

A discussão expõe tensões entre liberdade de expressão, responsabilidade civil e os impactos sociais das tecnologias que moldam o discurso público. Para os ministros, a imunidade das plataformas não pode mais ser tolerada.

A inconstitucionalidade do artigo 19

O cerne do julgamento é a constitucionalidade do artigo 19. Ele estabelece que as plataformas só podem ser punidas se não removerem conteúdos após decisão judicial. Os relatores, ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, consideram essa regra inconstitucional.

Eles argumentam que as empresas devem ser responsabilizadas se, após notificação das vítimas, não retirarem postagens ofensivas ou criminosas. Isso inclui conteúdos racistas, discursos de ódio, pornografia infantil ou ataques à democracia.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, reforçou a tese. Ele propôs que, em violações graves de direitos fundamentais, a remoção seja imediata. Para crimes contra a honra, como injúria ou difamação, a ordem judicial seria necessária.

O ministro Flávio Dino foi categórico: “Liberdade sem responsabilidade é tirania.” Ele destacou que a Constituição não concede imunidade a nenhum setor, incluindo as Big Techs. A responsabilidade civil é um princípio universal.

Dino citou o massacre de Suzano, em 2019, que deixou dez mortos. Ele lembrou que ataques assim são planejados ou anunciados em redes sociais, sem ação proativa das plataformas. A desinformação que compromete eleições também foi mencionada, amplificada por algoritmos voltados para o lucro.

Algoritmos sob escrutínio ético

Mas o que são esses algoritmos tão citados? Algoritmos são conjuntos de instruções computacionais que determinam como conteúdos são selecionados, organizados e exibidos nas plataformas digitais. Eles analisam o comportamento dos usuários – cliques, curtidas, tempo de visualização – para priorizar postagens que maximizem o engajamento.

Por que são alvos de críticas? Para defensores da ética e do direito, os algoritmos não são neutros. Eles são programados para favorecer conteúdos sensacionalistas, polarizadores ou falsos, que geram mais interação e, consequentemente, mais receita publicitária.

Essa curadoria algorítmica amplifica discursos de ódio, desinformação e até crimes, como apontam especialistas em direitos digitais. Ao priorizar o lucro sobre a responsabilidade, as plataformas se tornam cúmplices de violações, minando a confiança pública e a democracia.

O vertiginoso crescimento dos abusos da inteligência artificial elevou os crimes cibernéticos a um patamar alarmante. Rostos, vozes, cenários e até erros de linguagem são clonados com precisão maliciosa, criando conteúdos falsos que circulam sorrateiramente.

Nas mãos de milicianos digitais, os recursos parecem inesgotáveis. Publicidades fraudulentas proliferam, oferecendo remédios milagrosos para emagrecer ou canetas de Ozempic por uma fração do preço de farmácias. Dispositivos eletrônicos de última geração se espalham como fagulhas em uma floresta ressecada, inflamadas pelo vento do lucro fácil.

Esse ecossistema de engano, amplificado por algoritmos, transforma as redes em um mercado de ilusões. A confiança pública é corroída, e os prejuízos se acumulam.

O ministro Cristiano Zanin observou que, desde o Marco Civil, em 2014, a disseminação de conteúdos ilícitos cresceu exponencialmente. “A prognose legislativa de promoção da liberdade de expressão não se confirmou”, afirmou. Ele criticou a falácia da neutralidade algorítmica.

O ministro Alexandre de Moraes foi incisivo. “Os algoritmos são direcionados para favorecer conteúdos que geram cliques e receita”, disse. Para ele, as plataformas lucram com a viralização de conteúdos criminosos, como ataques a instituições democráticas.

O sistema de publicidade direcionada reforça mensagens polarizadoras. Essas mensagens rendem mais visualizações e faturamento, transformando as Big Techs em cúmplices de violações de direitos.

O ministro Gilmar Mendes argumentou que o artigo 19 criou um “véu de irresponsabilidade”. “As redes sociais são curadoras do discurso público, decidindo quais mensagens alcançam milhões”, afirmou. Para ele, regular as Big Techs protege a liberdade de expressão.

Danos amplificados pelo caos digital

A ausência de responsabilização tem impactos devastadores. Difamação, fraudes comerciais e crimes graves se multiplicam. Sites espelho imitam empresas legítimas, enganando consumidores. As vítimas enfrentam barreiras para remover esses conteúdos devido à exigência de ordens judiciais.

Mentiras que destroem reputações ou influenciam processos democráticos circulam livremente. Alegações infundadas de fraudes eleitorais são exemplo disso. Ataques a minorias, como contra religiões de matriz africana, intensificam a violência simbólica e real.

A ridicularização de grupos vulneráveis, como pessoas LGBTQIA+, agrava o cenário. As plataformas se tornam vetores de discriminação, minando a coesão social.

Flávio Dino fez uma distinção crucial entre opinião e mentira. Questionar a eficiência da Justiça Eleitoral é legítimo. Afirmar que há uma “sala escura” no TSE manipulando códigos é uma mentira criminosa.

Ele defendeu que a liberdade de expressão não é absoluta. Restrições a discurso de ódio, difamação ou ameaças à ordem pública são aceitas em democracias consolidadas, como os Estados Unidos.

Divergências e o futuro da regulação

A única divergência veio do ministro André Mendonça. Ele defendeu a validade do artigo 19, argumentando que as plataformas não podem ser responsabilizadas sem ordem judicial, exceto em casos previstos em lei.

Sua posição não encontrou respaldo. A maioria formada indica uma guinada regulatória. O julgamento será retomado com os votos de Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Nunes Marques.

Eles definirão as obrigações das plataformas e as circunstâncias de punição. Dino propôs o “paradigma do avião”. Assim como companhias aéreas seguem normas rigorosas, as plataformas não podem operar sem responsabilidade.

“Não existe liberdade sem responsabilidade constitucional”, afirmou. Ele criticou a autorregulação das Big Techs, incapaz de conter os danos causados por conteúdos ilícitos.

A decisão do STF é um divisor de águas. Em um mundo onde as redes sociais moldam opiniões e elegem líderes, a responsabilização das plataformas equilibra inovação e proteção de direitos.

O julgamento expõe as falhas do modelo atual. As Big Techs lucram com o caos digital sem arcarem com as consequências. Dino destacou: “Não são os juízes que tolhem a liberdade, mas empresas que se colocam acima da lei.”

Ao responsabilizar as plataformas, o STF reescreve as regras no Brasil. A decisão contribui para o debate global sobre o poder das Big Techs. Ela sinaliza o fim da impunidade das gigantes tecnológicas.

A pergunta permanece: as plataformas estão preparadas para a responsabilidade que a democracia exige? No Brasil, o STF responde: “Basta!”

Foto: Saulo Cruz/Agência Senado

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/stf-acua-big-techs-para-assegurar-a-liberdade-fundamental-e-livrar-a-democracia-dos-crimes-virtuais