Trump opera com outra lógica: a do caos.
O que é um “shutdown”
Nos Estados Unidos, o termo shutdown designa a paralisação parcial do governo federal quando o Congresso não aprova — ou o presidente veta — o orçamento anual que financia os serviços públicos. O ano fiscal começa em 1º de outubro e, sem a aprovação das chamadas appropriations bills ou de uma resolução provisória, o país literalmente “desliga” partes da máquina estatal.
Funcionários públicos são dispensados, parques e tribunais fecham, vistos deixam de ser emitidos, e milhares de famílias ficam sem salário. A lei americana como a brasileira proíbe que o governo gaste sem autorização orçamentária; logo, se não há consenso político, a engrenagem para. É uma crise institucional autoinduzida, prevista pelas regras, mas devastadora para a economia e para a credibilidade internacional dos Estados Unidos.
O paradoxo de 2025
A ironia deste ano é que o shutdown acontece sob um governo que possui maioria no Congresso. Donald Trump, reeleito em 2024, conta com maiorias republicanas tanto na Câmara dos Representantes quanto no Senado. No entanto, essa maioria está dilacerada por uma guerra interna: de um lado, os trumpistas radicais do chamado Freedom Caucus; de outro, os republicanos tradicionais, que temem o custo político e econômico da paralisia.
Trump, em vez de mediar essas divisões, optou por amplificá-las. Impôs ao Congresso um pacote orçamentário impossível: cortes de 30% em programas sociais, eliminação das verbas climáticas herdadas do Inflation Reduction Act, suspensão de fundos à Ucrânia e redução das contribuições à Organização das Nações Unidas (ONU). Quando o próprio Partido Republicano se recusou a votar esse texto, Trump vetou uma proposta provisória que manteria o governo aberto até dezembro. O resultado foi um shutdown iniciado em 1º de outubro de 2025 — e um país mergulhado em incerteza.
O caos calculado
Seria lógico imaginar que um presidente evitaria sabotar o próprio governo. Mas Trump opera com outra lógica: o caos é parte de sua estratégia de poder.
O shutdown oferece-lhe três vantagens políticas: primeiro, permite culpar os outros — os democratas, a “velha elite republicana”, o Congresso como instituição — pelo colapso do sistema. Segundo, mobiliza sua base com o discurso familiar de que “Washington não funciona”, reforçando a ideia de que ele é o único capaz de enfrentar o “pântano” burocrático. Terceiro, força o Congresso a negociar sob chantagem: quanto maior o sofrimento causado pelo bloqueio, maior a pressão para ceder às exigências trumpistas.
O shutdown, assim, deixa de ser uma falha de governo e se transforma em instrumento de dominação política. É o método Trump em sua essência: governar por meio da crise, testar os limites institucionais e usar a paralisia como demonstração de força.
Quem perde e quem ganha
Os números falam por si. Cerca de 700 mil servidores federais estão sem salário. Parques nacionais, tribunais e serviços migratórios estão paralisados. O Escritório de Orçamento do Congresso (CBO) estima que, se o impasse se prolongar, o país pode perder entre US$ 7 e 14 bilhões em crescimento econômico.
Mas para Trump, esses custos são secundários. A prioridade é consolidar sua autoridade sobre o Partido Republicano, reduzindo ao silêncio qualquer resistência moderada.
A crise econômica atinge sobretudo o funcionalismo, as famílias de baixa renda e os estados democratas — ou seja, os segmentos que não o elegem. O cálculo é perverso, mas coerente com sua visão de poder: provocar o colapso, culpar o inimigo e capitalizar o ressentimento.
Um governo em guerra consigo mesmo
O shutdown de 2025 expõe uma contradição central: Trump governa um país que ele próprio declara ingovernável. Sob a retórica de “limpar o sistema”, instala-se uma forma de autossabotagem política. As instituições continuam existindo, mas passam a operar sob chantagem permanente.
Esse é o verdadeiro significado do shutdown: não apenas a paralisação administrativa, mas a suspensão simbólica da racionalidade do Estado. A cada impasse orçamentário, Trump testa até onde pode esticar as cordas da democracia sem rompê-las. E, até agora, tem saído fortalecido, porque o caos alimenta sua narrativa de outsider perseguido.
O problema é que, desta vez, o custo não é apenas político: é econômico, social e global. A paralisia do governo americano fragiliza a confiança nos títulos do Tesouro, perturba mercados, abala a confiança na moeda estadunidense e reforça a percepção de declínio institucional da maior potência do planeta.
O reflexo internacional do caos americano
A crise orçamentária dos Estados Unidos transborda as fronteiras domésticas. O mundo inteiro depende da estabilidade fiscal americana: o dólar é a principal moeda de reserva, e os títulos do Tesouro são considerados o ativo mais seguro do planeta. Quando o governo se paralisa, instala-se o risco de atraso em pagamentos, suspensão de contratos e incerteza nos mercados globais.
Em 2025, o shutdown coincidiu com o período em que os EUA deveriam anunciar compromissos ambientais e de financiamento climático antes da COP 30 em Belém, o que enfraqueceu a posição americana nas negociações multilaterais. Países europeus e asiáticos reagiram com preocupação; já o Sul Global, em particular os BRICS, interpretou o episódio como um novo sinal de declínio da hegemonia americana.
Por que os BRICS ganham relevância
O grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, China e África do Sul) — agora ampliado com Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Irã e Emirados Árabes — propõe desde 2023 um sistema financeiro internacional mais estável e menos dependente do dólar. Quando os Estados Unidos mostram incapacidade de aprovar o próprio orçamento, perdem o argumento de previsibilidade que sustentou sua liderança desde Bretton Woods.
Para a China, que busca consolidar o yuan digital como alternativa internacional; para o Brasil, que defende um sistema multipolar de moedas; e para a Rússia, que opera sob sanções e vê o dólar como instrumento político, o shutdown é quase um presente: ele demonstra que o império está refém de suas próprias contradições internas.
Enquanto Washington se sabota, os BRICS seguem expandindo mecanismos de crédito e de compensação em moedas locais. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), presidido por Dilma Rousseff, ganhou força justamente porque oferece previsibilidade onde os EUA oferecem incerteza.
O contraste entre a paralisia e o planejamento
A paralisia de Washington contrasta com a capacidade de planejamento de longo prazo dos países emergentes.
A China acaba de aprovar seu 15º Plano Quinquenal; a Índia mantém altas taxas de crescimento e estabilidade fiscal; e o Brasil, sob Lula, preside em 2025, simultaneamente, o G20, o BRICS+ e a COP 30, consolidando-se como articulador político do Sul Global.
Enquanto o Congresso americano bloqueia verbas e o presidente usa o orçamento como arma política, o eixo emergente — BRICS+, ASEAN e União Africana — constrói agendas positivas de investimento, infraestrutura e transição verde. O shutdown evidencia, portanto, a diferença entre o império do impasse e a política do desenvolvimento.
O império do impasse
O shutdown de 2025 não é um acidente administrativo. É um projeto político deliberado, um gesto de força que transforma a disfunção em método de governo. Trump não quer um Estado eficiente; quer um Estado em colapso, que prove diariamente que só ele pode controlá-lo.
Mas, ao estender essa lógica para o sistema internacional, o resultado é outro: a erosão da confiança global no poder americano e a abertura de espaço para novas arquiteturas de governança.
Enquanto os Estados Unidos mergulham em suas próprias contradições, o mundo multipolar avança. E, pela primeira vez em quase um século, o planeta observa o império americano descobrir que a verdadeira ameaça à sua hegemonia não vem de fora, mas de dentro.
FOTO: Wikimedia Commons
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/trump-e-o-shutdown-o-caos-como-estrategia-de-poder