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Um Estado de Mal-Estar Global

Vivemos uma época em que a civilização, longe de avançar, parece ter se tornado refém de um projeto regressivo. A humanidade alcançou uma capacidade produtiva inédita: a tecnologia domina a natureza, a ciência prolonga a vida e a riqueza global cresce a taxas superiores ao aumento populacional. No entanto, o mal-estar é a marca do nosso tempo.

A era do desconforto civilizatório

A promessa do bem-estar social, construída sobre a solidariedade e a proteção do Estado, foi substituída pela ansiedade da competição e pelo culto ao desempenho individual. O século XXI inaugurou uma forma de sofrimento civilizatório: um Estado de Mal-Estar Global.

O mundo que saiu das ruínas da Segunda Guerra Mundial havia aprendido a lição do desastre. A sociedade, para sobreviver, precisava conter o mercado e subordinar o capital aos direitos humanos universais. O resultado foi o período mais virtuoso do capitalismo moderno: os “anos dourados” de crescimento, pleno emprego, distribuição de renda e expansão do Welfare State.

A economia se tornou um instrumento da política e a política, uma expressão da civilidade. O pacto entre capital e trabalho garantiu décadas de estabilidade e ascensão social.

A regressão neoliberal e o triunfo do mercado

Mas a história deu uma guinada perversa. Desde os anos 1970, com a desregulamentação financeira, o colapso de Bretton Woods e a virada neoliberal, as engrenagens da solidariedade começaram a se dissolver. As sociedades industrializadas abdicaram do controle social sobre a economia. O lucro passou a ser o único critério de racionalidade, e o mercado, que antes devia servir ao homem, passou a ditar os termos da vida em sociedade. O resultado é a financeirização absoluta — a supremacia do valor de troca sobre o valor de uso, da especulação sobre o trabalho, da acumulação sobre o cuidado.

As consequências estão em toda parte. Na Europa, o desmonte dos sistemas públicos transformou a previdência e a saúde em mercadorias. Nos Estados Unidos, a desigualdade chegou a níveis da era pré-rooseveltiana. Na América Latina, as políticas de austeridade e os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) destruíram o tecido produtivo e a proteção social, entregando aos bancos o papel de árbitros do destino coletivo. A lógica da competição deslocou a ética da solidariedade e instalou uma pedagogia da indiferença: cada um que se salve sozinho.

Os sintomas globais do mal-estar: Estados Unidos, Europa e Ásia

Nos Estados Unidos, a desigualdade de renda e de riqueza regressou a níveis próximos aos da era pré-Roosevelt, quando o país ainda não conhecia o New Deal. A parcela da renda apropriada pelo 1 % mais rico voltou a superar 20 %, enquanto os salários reais da classe média permanecem estagnados há mais de quatro décadas. O colapso sindical é notório: nos anos 1950, cerca de 30% dos trabalhadores eram sindicalizados; hoje, pouco mais de 10 %. O país que ensinou o mundo a sonhar com a classe média consolidou o paradoxo de uma economia poderosa e de uma sociedade fragmentada, onde trabalhadores pobres convivem com bilionários digitais e cidades repletas de desabrigados.

Na Europa, a austeridade fiscal corroeu o pacto social construído após 1945. O continente que inventou o Estado de Bem-Estar Social transformou-o em fardo orçamentário. A desindustrialização, a precarização do trabalho e o avanço da extrema-direita são sintomas de uma sociedade que perdeu sua alma social-democrata. O euro, que nasceu como promessa de integração solidária, tornou-se um instrumento de disciplina e exclusão. Grécia, Itália e França ilustram a regressão civilizatória: o bem-estar virou nostalgia, e a solidariedade, suspeita.

A Ásia, por sua vez, espelha as contradições do novo século. China, Índia, Indonésia e Vietnã tornaram-se epicentros do dinamismo industrial e tecnológico, mas enfrentam dilemas morais semelhantes aos do Ocidente: desigualdade crescente, degradação ambiental e competição desenfreada. A China tenta articular um novo contrato social — planejado, estatal, com horizonte de bem-estar coletivo — enquanto a Índia avança em meio a uma desigualdade brutal e a uma identidade nacionalista excludente. A prosperidade asiática convive com o mal-estar social: a abundância de bens não garante a harmonia entre os homens.

A nova luta de classes e o esvaziamento das formas de representação

A nova luta de classes é invisível, fragmentada, globalizada. Não se dá mais apenas entre burgueses e proletários, mas entre os 99% que vivem da renda do trabalho e o 1% que se apropria da renda de todos.

A desigualdade não se expressa apenas na renda, mas na desorganização política dos que trabalham e na impunidade dos que especulam.

Os velhos sindicatos — que durante o século XX foram os grandes articuladores da cidadania e do pacto social — enfraqueceram diante da globalização e das novas tecnologias. A digitalização pulverizou a classe trabalhadora: cada trabalhador tornou-se uma empresa de si mesmo, isolada, sem vínculos ou representação. O algoritmo substituiu o patrão; o aplicativo, o sindicato. O trabalhador da era digital perdeu não apenas o poder de barganha, mas também a identidade coletiva.

A erosão das instituições de mediação — sindicatos, partidos, movimentos sociais — criou um vácuo de pertencimento. É nesse vazio que florescem o ressentimento e o populismo autoritário. A ultradireita global soube se apropriar do desamparo das massas, oferecendo-lhes um simulacro de comunidade baseado no medo e na negação do outro. O neoliberalismo econômico casou-se com o tribalismo político: um produz a insegurança, o outro a canaliza.

Enquanto isso, a nova elite financeira — protegida por paraísos fiscais, algoritmos e monopólios digitais — não precisa mais da sociedade. Vive sobre ela, e não com ela. O capital se autonomizou, enquanto os Estados se ajoelham diante de seus humores. As democracias perderam substância porque o poder real migrou dos parlamentos para as bolsas. O cidadão foi substituído pelo investidor, e o voto, pela taxa de juros. O Estado, que deveria garantir o bem-estar coletivo, tornou-se o fiador do mal-estar financeiro.

O Brasil e o colapso da solidariedade social

O Brasil é parte desse enredo. A ofensiva neoliberal de 2016 inaugurou um ciclo de desmonte das políticas sociais, congelamento de gastos públicos e financeirização da política econômica. A austeridade, apresentada como virtude, destruiu a capacidade do Estado de planejar o futuro.

Sob a aparência da responsabilidade fiscal, o país mergulhou na irresponsabilidade social. O teto de gastos tornou-se o piso do sofrimento. A sociedade brasileira passou a viver num paradoxo: um Estado rico em tributos, mas pobre em cidadania.

A volta de Lula ao poder representa, nesse contexto, uma tentativa de reconstruir a civilização democrática. Mais que um programa econômico, trata-se de uma luta simbólica contra a barbárie que tomou conta do espaço público — o ódio, o negacionismo, o desprezo pelo outro.

A política volta a ser, ainda que com imensas dificuldades, o campo da convergência e do diálogo. O desafio é recolocar o Estado a serviço da sociedade, e não do capital financeiro, para que a economia volte a produzir justiça e não apenas lucro.

Reerguer o pacto civilizatório

A restauração do Estado de Bem-Estar, em escala nacional ou global, exige mais do que boas intenções: requer um novo contrato social. É preciso reverter a lógica que coloca o capital acima da vida. Significa reestatizar o futuro, recuperar o planejamento, repensar o papel das finanças, redefinir o sentido do progresso.

Nenhum algoritmo substituirá a solidariedade humana. Nenhum mercado garantirá a dignidade de quem precisa comer, estudar e envelhecer com segurança.

A civilização precisa, novamente, ser defendida. O mal-estar não é destino inevitável, mas o produto de escolhas políticas e morais. O mundo não carece de riqueza, mas de justiça. A liberdade não floresce onde impera a desigualdade. E o capitalismo, se quiser sobreviver a si mesmo, terá de reaprender a ser social. Reerguer o Estado de Bem-Estar — em qualquer de suas formas — é mais do que uma necessidade econômica: é um imperativo ético.

Como coloca Luiz Gonzaga Belluzzo em Lula, o Civilizador “a civilização precisa ser defendida… É tempo de recolocar em movimento as engrenagens do humanismo.” (jornalggn.com.br, 28/10)

Foto: Fernanda Carvalho/ Fotos Públicas

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/um-estado-de-mal-estar-global