Marcelo Zero aponta como Darcy Ribeiro usou a história dos Tupinambás para desafiar preconceitos europeus e reafirmar o orgulho brasileiro.
Meu pai, Romeo Zero, diplomata já falecido, foi cônsul do Brasil em Munique, Alemanha.
Bela e interessante cidade. O rio Isar, jardins acolhedores, o Deutsches Museum etc.
Cheia de história. Com alguma imaginação, ainda se pode escutar um cabo alemão fazendo discursos delirantes nas populares cervejarias.
Mas isso não vem ao caso.
Vem ao caso o fato de que meu pai teve a honra de receber o grande Darcy Ribeiro, em uma visita que fez à cidade.
Foram juntos a um jantar acontecido, se não me falha a memória, na prefeitura da cidade.
Noite de gala, parte da elite da cidade reunida.
Conversa vai, conversa vem, Darcy pareceu incomodado com o tom um tanto condescendente de alguns comensais, que pouco ou nada sabiam sobre o Brasil.
Darcy não se fez de rogado. Pediu a palavra e começou a contar, “sem papas na língua”, a história de Hans Staden.
Hans Staden, como é amplamente sabido no Brasil, foi um aventureiro, explorador e mercenário alemão que esteve por nossas paragens, em duas ocasiões, em busca de riqueza e glória fáceis, lá pelos meados do século XVI.
Eram os primórdios da formação do nosso país. A Belém brasileira ainda não existia. Tampouco as mudanças climáticas.
O desafortunado Staden, porém, não encontrou riqueza e glória, especialmente na sua segunda viagem.
Nessa ocasião, após ter o navio naufragado, ele foi aprisionado pelos Tupinambás no litoral de São Paulo, nas imediações de Bertioga.
Passou nove meses preso.
Nesse período, o pobre Hans, temendo ser sacrificado e devorado por seus captores, algo que os Tupinambás faziam com frequência com seus inimigos, passava o tempo, mencionou Darcy, chorando, orando e se humilhando ante seus encarceradores.
A essa altura da narrativa de Darcy, os comensais já estavam aflitos com a sorte de seu compatriota, preso “naquele lugar” horrível.
Darcy se encarregou de acalmá-los.
Os Tupinambás, contou Darcy, acabaram por soltar Hans Staden, que voltou à bela Alemanha para escrever a “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão”, na qual descreve vividamente e com notável autopiedade suas desventuras tropicais.
Fosse hoje, teria a coautoria de Friedrich Merz.
Alívio na plateia.
Mas Darcy continuou, afirmando que os Tupinambás não liberaram o pobre Hans porque dele se apiedaram.
“Não”, prosseguiu Darcy, “os Tupinambás soltaram seu compatriota porque o consideraram indigno de ser comido”.
Os Tupinambás decidiram que sua extraordinária covardia poderia contaminá-los e enfraquecê-los. Os Tupinambá, explicou Darcy aos atônitos comensais, só canibalizavam os guerreiros valentes e dignos.
Silêncio sepulcral.
Darcy, impávido, e sem nenhum resquício do complexo de vira-latas que abunda em nossas oligarquias, talvez contaminadas e enfraquecidas pelos seus neocoloniais e introjetados “hans stadens”, continuou sua fala, sempre enfatizando a extraordinária riqueza de um lugar chamado Brasil e a coragem de seu povo.
Friedrich Merz e sua brava equipe muito provavelmente teriam achado o jantar indigesto. Quiçá cansativo. Não sei, ao certo.
Só sei ao certo que Darcy e meu pai saíram “daquele lugar” muito satisfeitos e descansados. Dispostos a voltar por mais.
Foi um jantar antropofágico. Uma noite Tupinambá.
Foto: Reprodução
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/uma-noite-tupinamba