Como a escalada da violência de gênero, os abusos da Lava Jato e o legado do bolsonarismo revelam um mesmo projeto de ataque à democracia e à soberania nacional.
Os números recentes de feminicídio no Brasil revelam uma emergência nacional: são, em média, quase quatro mulheres assassinadas por dia por razões de gênero, com mais de mil vítimas somente em 2025 e recordes sucessivos desde 2015.
Por Larissa Ramina e Carol Proner*
Em diversas capitais, 2025 já superou todos os anos anteriores em casos de feminicídio, ao mesmo tempo em que movimentos como o Levante Mulheres Vivas convocam atos nacionais para dizer “basta” à violência patriarcal.
Esse pano de fundo de brutalização cotidiana dos corpos femininos é essencial para compreender a gravidade de outras formas de violência contra a mulher que se manifestam dentro do próprio sistema de justiça e das instituições políticas.
É nesse contexto que ganha relevo a denúncia da ex-juíza federal Luciana Bauer, que afirma ter sido agredida por Sergio Moro dentro de um elevador da Justiça Federal em Curitiba, à época em que ele comandava a 13ª Vara e a Operação Lava Jato. Ela relata um comportamento “extremamente agressivo” e descreve a existência de uma verdadeira “entidade mafiosa” instalada na vara e no TRF-4, que perseguia quem ousasse apontar irregularidades.
A denúncia não se limita ao plano pessoal: Bauer narra que habeas corpus eram “escondidos” do sistema, com documentos apagados para impedir o controle por juízes plantonistas, o que aponta para um padrão de manipulação processual incompatível com qualquer noção mínima de devido processo legal.
Quando uma mulher magistrada — situada em posição de aparente “prestígio” dentro da hierarquia jurídica — relata ter sido alvo de agressão e intimidação por um juiz estrela de uma operação midiática, vemos o patriarcado operando não só na esfera doméstica, mas também nos corredores do poder. A violência de gênero, aqui, assume forma institucional: silenciamento, gaslighting, desqualificação e retaliação contra quem ousa romper o pacto de impunidade. O corpo da mulher, mesmo togado, continua sendo um corpo “disciplinável”, passível de ameaça e controle.
A recente operação da Polícia Federal na 13ª Vara Federal de Curitiba, autorizada pelo ministro Dias Toffoli, aprofunda essa percepção de que algo estruturalmente podre se escondia sob o verniz moralista da Lava Jato. Os agentes foram à antiga sede da operação para apreender documentos e dispositivos eletrônicos, após reiterados pedidos do STF que não teriam sido atendidos integralmente pela Justiça Federal.
A diligência integra o inquérito que apura as acusações de Tony Garcia, ex-deputado e delator, que aponta abusos e supostas fraudes em delações premiadas envolvendo Sergio Moro e procuradores da extinta força-tarefa.
Se a Lava Jato foi inicialmente vendida como “a maior operação anticorrupção da história do Brasil”, hoje se acumula um conjunto robusto de elementos que a desnudam como experiência paradigmática de lawfare: manipulação de procedimentos, violações ao devido processo, conluio entre juiz e acusação revelado pela Vaza Jato e instrumentalização seletiva da justiça penal em favor de um projeto político e geopolítico específico.
O que se anunciava como cruzada moral acabou funcionando, na prática, como uma peça de guerra híbrida: fragilizou a Petrobras, atingiu pesadamente o setor de engenharia e construção pesada e ajudou a abrir caminho para a eleição de Jair Bolsonaro, representante de um projeto ultraliberal e economicamente funcional à desarticulação da soberania nacional.
A eventual iminência da descoberta de novas provas contra Moro — seja a partir das apreensões na 13ª Vara, seja pela corroboração das denúncias de Luciana Bauer e de delatores como Tony Garcia — tem um significado que ultrapassa a biografia de um ex-juiz e hoje senador. Trata-se de enfrentar a possibilidade de que uma operação alçada ao status de “modelo global” de combate à corrupção tenha sido, na verdade, o eixo de uma arquitetura de poder que conjugou misoginia, autoritarismo judicial e interesses econômicos internos e externos na destruição de capacidades estratégicas do Estado brasileiro.
A prisão de Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos e 3 meses por tentativa de golpe de Estado, com a confirmação de sua sentença pelo STF e a ordem para início do cumprimento em regime fechado, representa outra peça desse mesmo tabuleiro.
Não se trata apenas da responsabilização de um indivíduo que atacou abertamente a democracia, promoveu o desmonte ambiental, a necropolítica na pandemia e o discurso de ódio contra mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTI+. Sua ascensão ao poder foi viabilizada, em grande medida, pelo ambiente político-jurídico produzido pela Lava Jato, que criminalizou seletivamente um campo político e foi decisiva para a prisão e impedimento eleitoral de Lula em 2018.
Há, portanto, um fio que conecta a explosão de feminicídios atrozes, a violência relatada por uma juíza dentro do edifício da Justiça Federal, a atuação de uma vara transformada em centro informal de poder punitivo e a trajetória de um governo de extrema direita que naturalizou o ódio e a morte. A mesma cultura política que banaliza o assassinato de mulheres nas periferias e no interior, que relativiza medidas protetivas e subfinancia políticas de gênero é a que acha “normal” um juiz tratar agressivamente uma colega que ousa questioná-lo ou usar o aparato judicial para desestabilizar projetos populares e soberanos.
Criticar esse conjunto de acontecimentos significa apontar para a necessidade de uma justiça de transição ampliada: não apenas para responsabilizar o bolsonarismo por seus crimes, mas também para enfrentar o legado tóxico da Lava Jato e suas conexões com a violência estrutural contra mulheres e contra a soberania nacional. A reconstrução democrática exige que se rompa tanto com o autoritarismo militarizado das ruas quanto com o autoritarismo togado de gabinetes que se julgaram autorizados a reescrever a política brasileira em nome de uma moral seletiva.
Enquanto o país enterra mulheres vítimas de feminicídio, vai se tornando também inadiável enterrar — política e juridicamente — o mito redentor da Lava Jato. Dar centralidade à voz de mulheres como Luciana Bauer, às famílias destruídas pela violência de gênero e às populações atingidas pelo desemprego e pela destruição industrial resultante da operação é condição para que a palavra “justiça” recupere algum sentido que não seja o da força bruta travestida de legalidade.
*Larissa Ramina e Carol Proner são advogadas, doutoras em direito internacional, professoras da UFPR e UFRJ, integrantes da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Conselho Latinoamericano de Justiça e Democracia – CLAJUD.
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/violencia-lawfare-e-soberania-ferida-o-fio-que-conecta-feminicidios-lava-jato-e-bolsonarismo